Helio Begliomini
Biografia e Documentário
Expressão & Arte Gráfica, São Paulo – 2016,
136 páginas.
Prefácio: Raquel Naveira
Quando recebi os originais do livro Um Escritor que Virou Cidade, de Helio Begliomini, médico e autor paulista, sobre a vida e a obra de Monteiro Lobato, um dos mais célebres, talentosos e populares escritores de todos os tempos, pensei: “ – Mais um fã apaixonado por Lobato, como eu”.
Busquei então, no fundo de uma caixa de fotografias antigas e encontrei esta: meu avô e eu, de mãos dadas, no Sítio do Picapau Amarelo, em Taubaté. Foi um dia maravilhoso. Eu, uma criança fascinada pelo universo de Monteiro Lobato, que lera toda a coleção com encantamento e curiosidade, estava ali, no lugar em que ele nasceu; passou sua infância; brincou entre as árvores, os cafezais e a cachoeira. Chamou-me a atenção o cruzeiro em frente da casa colonial: um marco, um ponto de partida para tempos de fé, sofrimento, escravidão, ouro, bandeirantes espalhados pelas serras e pelos morros.
Andei por todo o sítio, acompanhada pela sombra de meu avô, que mais parecia um anjo, um espectro de Virgílio conduzindo Dante pelas paragens sobrenaturais. Na sala e na varanda imaginei Dona Benta na cadeira de balanço, conversando com seus netos, Pedrinho e Narizinho, a menina Lúcia Encerrabodes de Oliveira. Na cozinha, entre louças e moedores de ferro, vi tia Nastácia mexendo no fogão o caldo de suas crendices e de seus doces de frutas. E lá, na entrada da floresta, ninho de onças e índios, capão do mato, vislumbrei o tio Barnabé, com seu cachimbo, contando histórias de sacis, mulas sem cabeça e caiporas. E por toda parte, correndo espoleta, a boneca Emília me desafiava, mostrava a língua e se escondia atrás da figueira, sob cuja sombra, o sábio Visconde de Sabugosa montara o seu laboratório de vidros coloridos. Fantasias, sonhos e realidades materializadas no Sítio do Picapau Amarelo. Guardei a fotografia.
Com essa lembrança pessoal me unindo a Monteiro Lobato e a Helio Begliomini, li num só fôlego os originais de Um Escritor que Virou Cidade. Sim, Monteiro Lobato passou a ser o nome de um município paulistano na microrregião de Campos de Jordão, antiga Buquira, nome do rio que o atravessa. Lobato foi proprietário de uma fazenda nesse local, descrita por ele nos seus livros. Taubaté é outra cidade marcada pela presença do escritor com seu sítio, um parque temático, cheio de luzes da infância, cidade cravada no peito e na memória de gerações de brasileiros. Lobato abriu as portas do imaginário de todos e de cada um de nós. Jamais esqueceremos do casamento de Narizinho com o Príncipe das Águas Claras; das aventuras e caçadas de Pedrinho; do passeio pela Via-Láctea e pelas constelações; das estripulias da Emília reformando a natureza, alterando a forma e o tamanho das coisas; do universo da Mitologia Grega com seus deuses e heróis; da realização de nos sentirmos amigos pessoais do Peter Pan, da Cinderela e da Branca de Neve; de conhecermos personagens da História Universal como Cleópatra, Péricles, Hans Staden e Napoleão. Tantas aventuras existenciais e literárias Lobato nos proporcionou.
Impressionante a marca didática de Helio Begliomini, estudioso, meticuloso nos detalhes, no levantamento dos nomes das pessoas e dos lugares, das datas, das fotografias, das composições do todo da obra. E sempre de forma leve e clara, como se não tivesse feito esforço, mas como quem encarou a pesquisa como um divertimento lúdico, uma descoberta do espírito, um prazer.
No tópico “Resenha de uma Vida Singular”, Begliomini escreve sobre a origem abastada de Monteiro Lobato, neto do Visconde de Tremembé; sobre sua vocação para pintor, caricaturista e, posteriormente, escritor visual que pintava com palavras os cenários de sua infância na Fazenda Santa Maria, em meio ao morro de mata virgem. Interessante a foto de Lobato aos 12 anos, trajando terno, ao lado de suas irmãs Judith e Esther. Daí talvez ter mantido a tradição dando mais tarde às filhas os nomes bíblicos de Marta e Ruth.
Seguem-se a formação universitária de Lobato na Faculdade de Direito de São Paulo, a do Largo São Francisco; os anos que morou na república “Minarete”, um pequeno sobrado no bairro Belenzinho, dando início a uma carreira cultural e jornalística na metrópole; a nomeação como promotor público em Areias, no Vale do Paraíba; o matrimônio com “Purezinha”, Maria Pureza da Natividade de Souza e Castro, sua amada esposa a quem tratava com o carinho e a admiração de quem percebe na companheira a lucidez, a renúncia, o sofrimento, a lealdade. Bonita a foto de Purezinha jovem, envolta numa estola de pele e arminho.
Nascem os filhos do casal: Marta, Edgar e Guilherme (falecidos ainda moços) e Ruth. Dedica-se à escrita do livro Reinações de Narizinho, primeiro volume que embasa toda a coleção do Sítio do Picapau Amarelo.
Begliomini coloca como estopim da carreira literária de Lobato o artigo Velha Praga, publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”. Surgem outros artigos como Urupês e a figura emblemática do Jeca Tatu, símbolo do atraso e da miséria da região rural do Brasil.
No item “Político Fugaz e Mudança para São Paulo”, estamos em 1916 e encontramos Lobato morando novamente em São Paulo, em contato com amigos intelectuais, publicando Urupês (em tupi, “urupês” é uma planta, um cogumelo conhecido como orelha-de-pau e também o nome da cidade onde se passam os fatos dos contos), observando com ressalvas as polêmicas da Semana de Arte Moderna. Foi definido pelos críticos literários como um pré-modernista centrado no regionalismo e na revelação da realidade brasileira.
Lobato foi tradutor; escritor infantil, que acreditava na inteligência da criança; batalhador combativo pelos interesses nacionais, principalmente pela causa do petróleo; gráfico e editor visionário, que apostou na venda e distribuição de seus livros de porta em porta, em mercearias e pelo correio; adido comercial nos Estados Unidos, onde se convenceu de que “governar é abrir estradas”, tese do presidente Washington Luis.
A luta a favor da causa do petróleo brasileiro acirrou políticos contrários, deixou-o pobre e abatido e, finalmente, trancafiou-o na cadeia, durante a ditadura getulista. Lobato falece aos 66 anos, no dia 4 de julho de 1948, num apartamento cedido por Caio Prado Jr, no centro da cidade, provocando grande comoção.
Begliomini levanta particularidades físicas e psicológicas de alguns dos personagens de Lobato como o Jeca Tatu e os integrantes do Sítio do Picapau Amarelo. Esclarece a questão da denúncia de racismo feita à obra infantil de Lobato, explicando que uma obra não pode ser julgada fora do contexto histórico em que foi escrita. Após debate com educadores, o Iara (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental) desistiu de pedir a proibição da adoção dos livros de Monteiro Lobato nas escolas.
Lobato pertenceu à Academia Paulista de Letras, mas, depois de tentativas, declinou o convite da Academia Brasileira de Letras para que fizesse parte de seus quadros, pois sentia-se desiludido e sem vaidade, com um “irredutível amor à liberdade” e não desejando entrar na “gaiolinha dourada”.
Begliomini elenca as obras de Lobato com sinopses esclarecedoras; apresenta caricaturas de Lobato feitas por vários artistas, sempre destacando as sobrancelhas cerradas; dissertações e teses acadêmicas, discos, documentários, programas de televisão sobre a obra lobatiana; nomes de academias, ruas, avenidas, bibliotecas, escolas, edifícios, praças, prêmios literários, teatros e cidade que homenagearam o afamado escritor; traça uma linha do tempo cronológica da vida de Lobato e destaca ideias e frases de seus livros e discursos. Uma das mais inspiradoras é: “Um país se faz com homens e livros”. Como este, Um Escritor que Virou Cidade, sensível registro da trajetória lobatiana, de Helio Begliomini.
Raquel Naveira[1]
[1] Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infanto-juvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil.