Poemas portugueses de Raquel Naveira - Ensaio crítico por Rita de Cássia Pacheco Limberti
Pelo oceano da Poesia
Regressaremos juntos
Às fontes,
Às raízes,
À glória de Portugal.
(poema “Dom Sebastião”, p.14)
Recebi das mãos da poetisa sul mato-grossense Raquel Naveira, um exemplar do magnifico “Poemas portugueses”. Que livro! Personagens históricos, lugares, pessoas da família, todos e cada um é reverenciado em sua condição de origem, de gênese, em sua ancestralidade. Sem dizer “obrigada”, Raquel celebra a gratidão liricamente, desenha sua própria imagem, aveluda seu perfil, olha-se no espelho. Que beleza aparece refletida! Debruçada sobre si mesma, consegue o distanciamento mínimo necessário para obter o foco de sua fisionomia afetiva, que se revela no fundo de seus olhos escuros, de seu olhar profundo (“Sempre choro / Ou estou para chorar”), no seu jeito doce de sentir pena de tudo (“Como se eu devesse a Deus e aos homens / Mil perdões”), de ver beleza no que é triste (“Todo prazer / Transformo em mágoa.”). A apresentação, escrita pela própria autora, explica com certa modéstia o admirável percurso que cada um dos poemas seguiu até estarem todos reunidos neste livro. Como venturosas caravelas, cada um dos poemas singrou mares em rotas próprias (cada grupo deles foi publicado em outros livros) e vieram todos baixar âncoras nessa cintilante antologia. Que maravilhosa viagem Raquel empreendeu em cada um!
A navegação, em si, já se orienta pelo sentido que todos buscamos: quem sou eu? O enigma está nas inúmeras repostas que elaboramos ao longo da vida, que consiste no fato de elas nunca se conterem na primeira pessoa (eu) ... As respostas estão sempre no outro, em alguma coisa extrínseca, fora de nós mesmos. É o espelho... para nos vermos, temos que olhar para o que nos rodeia, para o que está a nossa frente, para fora de nós... e, temporalmente, devemos retornar ao útero de nossa existência, mais que o útero físico materno, o útero do tempo - sem ponteiros ou algarismos -, aquele que guarda a marca cósmica de nosso engendramento...
Então, em algum momento passamos a existir... mas não lembramos... Quando nos damos conta, já nos assujeitamos (já nos tornamos um sujeito)... temos um nome ... e já chegamos dentro do curso de uma história... Tanta coisa já aconteceu... pegamos o script e entramos para desempenhar nosso papel...
Raquel elabora essa viagem em busca de si mesma... cada poema percorre um trecho da rota em direção a sua gênese... caravelas valentes, balouçando no mar bravo de sua existência... O caminho é longo, revolto, incerto... e, nas vagas, cada nau vai deixando no rastro de espuma, um lampejo identitário... Maria do Adro, Maria da Fonte (“Por fora, perfume vago de magnólias, / Por dentro, mulher úmida e quente.”), Maria da Penha (“Meu orgulho / Tornou-me penha.”), Menina dos Rouxinóis (“Sou a menina dos rouxinóis, / Desafio o mundo”)...
Os personagens mais ilustres da história de Portugal, ela os traz com intimidade: ora os trata em primeira pessoa (“Bravo Dom Sebastião, / Virás salvar-me”), ora os incorpora, como em Inês de Castro (“Pedro, / Faze-me rainha.”)... Juntam-se a eles Leonor Telles, Dom Henrique, o Navegador, Cabral, constelação norteadora do caminho perigoso pelo Cabo Bojador, Cabo da Tormentas, Cabo da Boa Esperança... Essa primeira etapa da viagem é vencida: conhecemos a Senhora (livro de poemas em que esses primeiros poemas estão contidos, na parte intitulada Senhora do Adro).
Ei-la! Como é belo seu perfil, sua estirpe nobre e altiva; segura de si e arrebatada, conduz a nau com coragem. É o seu Sangue português: raízes, formação e lusofonia (razão de sua sensibilidade e intrepidez, além de ser o título de outro livro de poemas) de onde vieram os poemas mais líricos de toda a obra: Sangue Português, Língua Portuguesa, Figueira da Foz e Só se Vestia de Preto). Com um apelo pungente ao âmago de sua essência, ela iça as velas principais de sua travessia: seu sangue, sua língua, seu lugar de origem e sua avó.
Em Sangue Português, ela toma a voz do avô, assume seus sonhos e sentimentos: “Desejei tudo: / Uma nova estrela, / Uma nova sorte (...) Estaria morto, / Absorto em mim mesmo, / se não tivesse partido (...) Mas sei que fiz jus / Ao meu sangue português.” Em Língua Portuguesa, ao conversar com seu próprio idioma, vaticina seu dom e seu talento, seu fado e sua sina – ser poetisa: “Que minha poesia se erga, / Gótica e galaica / Como a torre de Belém!” Em intrigante metalinguagem, a artista dialoga com seus versos, falando de seus próprios versos; conversa com sua língua, falando em sua própria língua. Fala da língua, para a língua, pela língua. Fala com os versos, dos versos, em versos. Bárbaro!
Figueira da Foz é a bela metáfora da árvore genealógica: “Figueira, / Árvore sagrada, / Leitosa, / Cujos frutos / Se abrem roxos, / Testículos do outono.” É pungente a partida dos avós (Deixaram a pesca, / O sal, / Os navios / Os molhos de trigo”) e há um elemento transcendental e místico “Um albatroz acompanhou a viagem” (o Espírito Santo?) “Em nenhum momento se sentiram sós, / Havia um chamado, / Uma missão, / Uma voz”. Tem-se fortemente presentes, apontadas pelo próprio campo semântico, a fé e a religiosidade (“não se sentiam sós”, “chamado”, “missão”, “voz”), assim como a descendência e a tradição (“Por isso há dentro de nós/ Sementes de figo / E gotas do Mondego.”), marcadas pela exuberância léxica do sentido de fertilidade dos termos “sementes” e “gotas”.
Só se Vestia de Preto apresenta o fenótipo da alma lusitana. Com figuras belíssimas (“No inverno / Envolvia-se num manto de treva” (...) “O negror se instalou dentro dela / Como a morte de um sol.” “Às vezes, o seu colo me parecia uma nuvem preta, / Inchada de chuva,” (...) “Carregava seu fardo preto / Com a dignidade e a renúncia / De uma noite sem lua.”) Interessante é notar que até nessa descrição da avó – que ela faz pela voz da mãe - aparece a figura da viagem de travessia: “O seu coração era um oceano / De águas profundas / Onde ela singrava, / Impávida, / Como um navio de velas negras.”.
Sangue Português: Raízes, Formação e Lusofonia – Primeira Parte traz ainda, como Senhora, personagens ilustres: Bocage, Florbela Espanca, Dona Maria, a Louca; lugares emblemáticos: África, Cabo Verde, Moçambique , além de inusitados deslocamentos de personagens ilustres: Lord Byron em Sintra, Ricardo Reis no Rio de Janeiro, Camões em Macau, além de outros poemas.
Do livro Casa de Tecla, tem-se o DNA lusitano: Camões, Língua Portuguesa e Alma Portuguesa. Sintomaticamente, nos versos de Camões e de Língua Portuguesa, aparecem as figuras da navegação, da travessia, da viagem do descobrimento (de si mesma). No poema Camões: “Meu corpo todo tremeu, / Como nau no oceano, / Mergulhei num mundo sombrio, / Num labirinto de sal.”; no poema Língua Portuguesa: “Oferenda consagrada a ti, / Ao Tejo, / Às espumas do mar.”
Do livro Jardim Fechado; uma Antologia poética, “Sete Saias” é o único poema que compõe o Poemas Portugueses. Nele também se encontra a figura do mar: “São sete ondas, / Sete virtudes, / Sete cores” (...) “Dorme na areia / A mulher de Nazaré”.
O último poema do livro é um poema inédito: Lisboa Chorou (a Amália Rodrigues). Ao falar da morte, já não fala de naus. Fala de gaivota... não é mais navegação, é voo... (“a alma de Amália / pairou liberta, / Gaivota melodista. / Lisboa chorou / o voo de sua fadista.”) Voou... A viagem continua...
Todas as ocorrências de alusão à viagem marítima assentam o sentido de deslocamento, de procura, de busca, de descoberta. A história lusitana se escreveu nas vagas marítimas... a história dos avós iniciou-se ao lançarem-se ao mar... está na alma portuguesa... (“navegar é preciso / viver não é preciso”). É destino, é sina, é fado.
Raquel empreende sua viagem no mar etéreo da poesia... este é o seu fado. Uma fada fadada a ser poetisa!
Rita de Cássia Pacheco Limberti = semioticista/crítica de arte - Campo Grande, dezembro, 2019.