Alfama, bairro antigo de Lisboa, de ruas estreitas, casas de fado, igrejas com átrios floridos. 13 de junho de 1888, consagrado a Santo Antônio. Cheiro de sardinhas, vasos de manjericos e toalhas de renda penduradas nas janelas. Foi num dia como esse que nasceu Fernando Antônio Nogueira Pessoa, o maior poeta português depois de Camões. O que fundaria um novo ciclo na literatura, atingindo superior nível estético. Órfão de pai aos cinco anos, é levado pela mãe e pelo padrasto a Durban, na África do Sul. Em 1905 regressa a Portugal, matricula-se na Faculdade de Letras de Lisboa, abandonando as aulas. Torna-se correspondente comercial em línguas estrangeiras. Lidera o grupo da revista “Orpheu”, primeiro movimento propriamente moderno em Portugal. Adere a ideias futuristas. Colabora com as revistas “Centauro”, “Athena”, “Contemporânea”, “Presença”. Sem livros publicados, já era considerado um mestre da crítica literária. Em 1934, participa do concurso de poesia promovido pelo Secretariado Nacional de Informações, com o épico nacionalista, Mensagem, recebendo o segundo lugar. Doente, de constituição biopsíquica histérico-neurastênica, é caso complexo e estranho. Interessado em teosofia, alquimia, ocultismo, astrologia. Envolvido pelo tédio. Corroído por um pessimismo agudo e desgostoso. Cultivando um transcendentalismo panteísta, “onde as flores sentem, as pedras têm alma e os rios têm êxtase ao luar”, falece de cirrose hepática em 30 de novembro de 1935, aos 47 anos.
Genial e dramático, ao buscar o significado verdadeiro da existência, Fernando Pessoa desdobrou-se em heterônimos, sendo os principais: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Cada heterônimo é uma matriz, uma cosmovisão, um arquétipo, um meio de conhecer-se a si mesmo por multifaces, é o prazer da mistificação de uma alter-ego. Alberto Caeiro é o guardador de rebanhos, louro, olhos azuis, buscando a vida ingênua e simples do campo com sua alma de pastor rude e errante. Bucólico, puro em suas sensações. Álvaro de Campos é o poeta maquinizado, urbano, descrente, angustiado, misto de razão e energia bruta. Engenheiro naval, instruído e culto, vivendo a vertigem do esplendor das grandes metrópoles. Febril sob a luz das lâmpadas elétricas. Materialista, alucinado, amoral. Ricardo Reis nasceu em 1887. No Porto, é médico, moreno mate, estatura média, poeta pagão, epicurista egocêntrico, entre dores e gozos. Acredita no destino, no fatalismo. Latinista fascinado pelo ideal greco-romano e pela obra do poeta Horácio
Cético, hedonista, educado num colégio jesuíta, leu os filósofos e poetas da Antiguidade. Monárquico, sente-se estrangeiro em sua terra. Procura na tradição clássica um remédio para seus males. Clama aos deuses gregos: “Quero dos deuses só que me não lembrem/ Serei livre _ sem dita nem desdita,/ Como o vento que é a vida/ Do ar que não é nada./ O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos, Cada um com seu modo, nos oprimem./ A quem deuses condem/ Nada, tem liberdade.” Ricardo Reis tem uma musa, Lídia, nome que lembra as terras da África, antiga Líbia e a primeira cristã romana, vendedora de púrpura, citada no evangelho por Paulo (Atos 16;14). Para ela, escreveu:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores
no regaço.
O poeta Ricardo Reis é grande, inteiro, põe-se todo em cada coisa, nos mínimos detalhes, pois “Assim em cada lago a lua toda/ Brilha, porque alta vive.”
Interessante que, tendo imaginado a história de seus heterônimos, quando Fernando Pessoa morreu em 1935, eles não morreram. Alberto Caeiro já havia falecido há vinte anos, mas Álvaro de Campos e Ricardo Reis continuaram vivos, já que seu criador não os matou. A obviedade dessa sobrevivência escapou a todos que prantearam a morte de Pessoa. José Saramago, o romancista, dramaturgo, poeta nascido em 1922 na província de Ribatejo, Prêmio Nobel de Literatura em 1998, foi ver o que teria supostamente acontecido com um dos sobreviventes, Ricardo Reis. Assim surgiu o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984. Saramago descobriu na sua rica imaginação de urdidor de tramas que, um mês depois da morte de Pessoa, Reis, que estava auto-exilado no Rio de Janeiro, regressou a Lisboa. Viveu aí todo o ano de 1936, ano cruel para a política portuguesa e europeia: instalação da ditadura salazarista, indícios da proximidade da Guerra Civil espanhola, ascensão de Hitler e Mussolini. Cético, paralisado na renúncia à ação e no aperfeiçoamento interior, Reis percebe que é difícil permanecer alheio ao inquietante espetáculo do mundo. Atormentado, perturbado, o médico-poeta vive abatido e solitário. Hospeda-se no Hotel Bragança, na Rua do Alecrim, onde é atendido por uma camareira misteriosa de nome Lídia. Aparece uma outra mulher determinada e forte, a hóspede Marcenda. Reis vai visitar o túmulo de Fernando Pessoa no cemitério dos Prazeres. Fernando Pessoa conversa com Ricardo Reis e diz ter oito meses para ainda vagar nesta dimensão do planeta. Fernando Pessoa visita Ricardo Reis no hotel, senta-se no sofá do quarto e travam um diálogo incrível, surreal, naquela pontuação característica de Saramago. Transcrevo trecho:
“Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reencontrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andamos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excepcionais nove meses é quanto basta para o total olvido, e agora diga-me você que é que o trouxe a Portugal.” (pág.80)
Depois desse diálogo, Fernando Pessoa levanta-se, olha-se no espelho e não se vê .É um vampiro, um fantasma. Comenta que Reis tem sina de “andar a fugir das revoluções, pois em 1919 foi para o Brasil por causa de uma que falhou em Portugal e depois fugiu do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também.” Saramago nos remete assim às revoluções da Monarquia do Norte em Portugal, uma contrarrevolução ocorrida na cidade do Porto, em 19 de janeiro de 1919, pelas juntas militares favoráveis à restauração da monarquia em Portugal, em plena Primeira República Portuguesa e a Revolução Constitucionalista de 1932, movimento ocorrido nos estados brasileiros de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, que tinha por objetivo derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.
Ressaltemos neste ponto que Fernando Pessoa foi acusado injustamente de ser alienado, salazarista e fascista por causa do patriotismo de seu livro Mensagem. Quando o Suplemento Literário de “O Estado de São Paulo” publicou o poema “Salazar”, de Fernando Pessoa, a surpresa foi geral, pois poucos sabiam que ele era tão vigorosamente anti-salazarista.
Ricardo Reis confessa a Fernando Pessoa, nesse encontro sobrenatural entre criatura e criador, que continua monárquico, que se pode ser monárquico e não querer um rei. Desejar o parlamentarismo. E era esse o seu caso.
Saramago nos prende do começo ao fim desse romance fantástico. A minuciosa pesquisa histórica e a reconstituição de época fluem sem ranço documental. Vibra em cada página a identidade lírica portuguesa, que também pulsa em minhas veias de neta de portugueses.
Um dia, vinda do oeste, do sul de Mato Grosso para o Rio de Janeiro, em 2006, onde residi por dois anos, vizinha ao aterro do Flamengo, olhando as palmeiras, as curvas da baía de Guanabara, visualizei as caravelas do descobrimento chegando na névoa e depois o navio que trazia D. João VI, D. Pedro I, Carlota Joaquina e pensei: eles se depararam com a mesma paisagem que estou admirando agora, neste lugar. Assim como Ricardo Reis também andou sob estes flamboyants alaranjados, estas castanheiras. Num delírios, formou-se diante de mim a silhueta do próprio Ricardo Reis, magro, de óculos, usando um terno escuro, um guarda-chuva servindo de bengala, chutando as folhas, caminhando em direção à praia. Escrevi:
Encontrei
Ricardo Reis
Certa vez
Na esquina do Flamengo,
Estava magro,
Caminhava trôpego,
Os olhos fitos na baía de Guanabara,
Andamos entre palmeiras,
Ele me falou da infância,
Do colégio jesuíta,
Das lições helenistas
E, saudoso monarquista,
Lembrou das caravelas
Que chegaram ao Brasil
Exatamente
Naquela paisagem bonita.
Senti-me com Lídia
Quando ele disse que minha testa branca
Ficaria bem coroada de rosas
(Rosas que se apagam tão cedo),
Abelhas voavam ao nosso redor
E as folhas estalavam aos nossos pés.
_Netuno está quieto
Sob as águas tranquilas,
Ninfas passeiam
Com asas de libélulas
Enquanto as Parcas
Tecem os fios de nossas vidas;
Logo será noite,
Após o ouro de Apolo
Segue-se a prata de Diana
E a chama estremece.
Por algum tempo
Ficamos mudos,
Inscritos na consciência dos deuses,
Depois seguimos rumo à igreja da Glória,
Ele contou que não temia a morte,
Que fugia da dor
E lutava contra a timidez.
Confessou que era dolorido
Ser um expatriado
Mas que vivia alto,
Acima das circunstâncias,
Acima de onde os homens têm prazer ou dores,
Cheio de lucidez.
Não foi embriaguez,
Encontrei Ricardo Reis no Rio de Janeiro
Certa vez.
Fernando Pessoa criou Ricardo Reis. Saramago descreveu o encontro de ambos, depois da morte de Fernando Pessoa. E eu me encontrei com Ricardo Reis, no Rio de Janeiro, certa vez. Assim, este ensaio é um delírio, “um labirinto, um novelo, uma teia.”