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  • Fonte: Helio Begliomini

A quem muito desenvolveu e fortaleceu minha fé”.

Dezenove de agosto de 1991, ao meio dia, deixava o nosso convívio alguém muito especial: Bruno Carra, ou mais conhecido como padre Bruno. Apascentou o rebanho de nossa paróquia, a de São Pedro Apóstolo, no bairro do Tremembé – zona norte da capital de São Paulo –, por aproximadamente 36 anos (!), dos seus 44 anos de sacerdote. Nos últimos três anos já não tinha mais o encargo da direção administrativa, mas não se furtava à celebração eucarística diária. Setenta e sete anos de idade, uma vida inteira dedicada integralmente a Deus e à Igreja.

Sofreu muito, dizia ele, para chegar a ser ordenado. Pressões de todos os lados, aliadas à dificuldade econômica, pareciam obstar peremptoriamente sua vocação. Mas não era pusilânime; ao contrário, muito corajoso e arrojado. Sempre guiado pelos insondáveis caminhos de Deus. Após muitas lutas, conseguiu receber o sacramento da ordem aos 33 anos. Para a época, ele já era considerado velho. Entretanto, saboreou sua vocação de modo singular e a viveu 24 horas por dia até o fim. Por muitos e muitos anos não tirou férias, pois não encontrava substituto para seus fiéis. Era um pastor de almas sincero, e deu a sua vida pelos paroquianos. Uma vida que foi consumida paulatinamente: anos após anos... meses após meses... dias após dias... minutos após minutos... segundos após segundos... Em cada etapa não esmorecia nem se deixava vencer pelo desânimo e contratempos que a vida se lhe impunha. Respondia sempre com coragem e com firmeza, temperadas com uma boa dose de perseverança, virtudes hoje em dia raras.

Padre Bruno foi um homem de Deus, e por Ele entregou tudo o que de mais nobre tinha – a vida (Figura 1). Viveu o seu sacerdócio sempre em sintonia perfeita com a Igreja, que se resumiu nos três simples votos: castidade, pobreza e obediência. Na castidade, tinha o seu carisma, aquela que é a virtude por excelência de quem se consagra a Deus. Vivia uma castidade consciente, máscula, despojada, coerente com a sua fé, e por total serviço aos irmãos. Na pobreza tinha a sua identidade com o próximo, pois era ela que fazia com que os homens pudessem se sentir iguais perante Deus.

Vivia a pobreza de coração sincero. Compartilhava do que podia para com os mais necessitados. Quantos foram por ele ajudados materialmente! Do pouco que tinha multiplicava generosas ações. A pobreza material alimentava uma riqueza interior incomensurável. Como gostava de educar, dar bons conselhos, orientações que, se necessário fosse, não media tempo falando numa boa conversa. Gostava de estar entre os paroquianos. Sempre convidava os que estavam próximos a ele para uma refeição conjunta em sua casa, que era ao lado da igreja. Aliás, devido à sua proximidade e à maneira amiga com que conduzia sua vida, não tinha privacidade, pois sua residência era sempre uma entrada e saída de pessoas.

Obediência... foi um voto vivido de modo peculiar por ele e ao mesmo tempo profundo. Em virtude do disritimado mundo hodierno fica difícil aquilatar o peso da palavra obediência. Talvez poder-se-ia substituí-la por fidelidade. Sim, fidelidade é o termo que pode expressar o que foi ser obediente, uma vez que hoje em dia se conhece bem o que seja infidelidade. Ele foi obediente, foi fiel à Igreja cegamente. Carregava consigo profundo respeito pelo Santo Padre, o Papa, bem como pelo bispo e seus superiores, independentemente de quem fossem. Eram igualmente homens, porém, homens que estavam colocados por Deus e iluminados pelo Espírito Santo para guiarem a santa Igreja naquele tempo oportuno. Mesmo que não concordasse com o parecer de seu superior, ele obedecia intrepidamente.

1 Texto escrito por ocasião de sua morte como oração póstuma, em agosto de 1991.

Trabalho apresentado no XIV Congresso Nacional da Sobrames – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, realizado na cidade de Recife (PE), em 1992.

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Figura 1 – Padre Bruno Carra rodeado de crianças num de seus momentos litúrgicos do extenso ministério paroquial que exerceu na Paróquia de São Pedro Apóstolo, no bairro do Tremembé (Foto gentilmente fornecida por José Pio Tamassia Santos).

Eu pude conviver com ele aproximadamente 29 anos. Eu o conheci desde a minha mais tenra idade. Muito aprendi de suas palavras e de seu exemplo. Não era um padre erudito, tampouco vulgar; entretanto, no seu linguajar simples, coloquial, sempre procurava transmitir conhecimentos novos sobre a Igreja. Em seus sermões, era difícil desviar a atenção, pois sempre se ouvia algo de novo, algo mesclado com a experiência pessoal ou com algum conhecimento importante da vida da Igreja ou da comunidade.

Ainda me lembro, quando criança, das missas nos domingo de manhã, emolduradas com os raios de sol que penetravam pelos vitrais, e adornadas com os pássaros que, por vezes, voavam e cantavam garbosamente no interior da igreja. Mais tarde, na missa dos jovens aos sábados à noite, o som dos instrumentos tentava aconchegar o ambiente; e sempre se ouvia e se via prazerosamente o padre Bruno, um homem coerente, que falava o que vivia, e vivia o que falava. Sua devoção à Santíssima Virgem era inesquecível. Praticamente não terminava uma homilia sem invocar o nome de Maria. Na consagração eucarística, tinha uma marca própria. Fletia sempre e acentuadamente a cabeça, e sorria ao elevar a hóstia e o vinho consagrados. Na transubstanciação do pão e do vinho parecia “trans-ver” com os olhos humanos, o sagrado corpo e o sangue de Jesus, reservado para a visão beatífica no céu. Eram simples gestos, mas encerravam grandes mensagens – a certeza da fé, a segurança de estar no caminho certo, a verdade da doutrina.

Foi um homem empreendedor. Construiu todo o salão paroquial sobre lojas que alugava; reformou e pintou diversas vezes a Igreja de São Pedro Apóstolo; idealizou e fomentou a construção do abrigo de velhinhos Frederico Ozanan, além de animar ininterruptamente vários movimentos pastorais na comunidade. Tudo para Deus, nada para si. Nunca deixava para depois o que podia fazer ou dizer hoje.

Tinha um temperamento difícil, por vezes, áspero; quando se dava conta, já estava gritando e gesticulando com alguém. Era um genuíno descendente de italianos. Em algumas circunstâncias, parecia ser bruto, antipático e até irreverente. Noutras, sua intransigência e pessimismo interpunham sérios obstáculos no caminho, que aparentava estar destinado ao fracasso. Entretanto, na mesma medida, seu coração explosivo modulava uma tremenda dose de bom senso, e uma generosa noção de arrependimento. Nunca vi alguém como ele ser tão humilde. Chegou por diversas ocasiões a pedir desculpas em público, durante as missas, por erros, deslizes ou grosserias que teria cometido contra os seus paroquianos. Em tais gestos podia-se aquilatar a grandeza interior daquele homem, pois não se tratava meramente de palavras, mas da necessidade de ser coerente com a fé. E que fé!

Certa vez, ainda quando era adolescente, confidenciou-me dois fatos extraordinários que aconteceram com ele. O primeiro, dizia ter perdido a chave da porta da igreja e não sabia como entrar. Logo achou outro molho de chaves de outro local e ao invocar São José para que pudesse entrar; conseguiu fazê-lo rapidamente com chaves alheias, sem saber ao certo como!

O segundo, mais marcante, aconteceu certa vez quando ele foi chamado para ministrar a unção dos enfermos, na época, chamada de extrema-unção. Ao sair do quarto onde jazia a moribunda, os familiares entristecidos chegaram-se a ele, e ele os animou dizendo que a paciente havia feito uma boa confissão e recebido os sacramentos. Imediata e atonitamente replicaram que havia muito tempo que ela não conseguia se comunicar!

No dizer do nosso grande papa João Paulo II, o padre Bruno viveu o sacerdócio sendo padre por dentro e for fora. Não tinha vergonha de sê-lo. Sua batina surrada e suada jamais abandonaria o seu corpo no exercício de seu ministério. Era o desejo de sua mãe; era também o seu desejo. Ela fazia não somente parte de seu ser, mas muito mais, de sua coerência de vida. Queria ser enterrado com suas vestes sacerdotais, pois mais do que ninguém ele sabia que era sacerdote para sempre. Tudo isso o ajudava a ser o que era. E sua vontade foi cumprida. Oito horas após sua morte, com muitos repiques de sinos, foi celebrada a sua primeira missa de corpo presente. O celebrante foi dom Joel Ivo Catapan, bispo auxiliar da zona norte, e nada menos que 12 sacerdotes foram seus concelebrantes. A igreja estava apinhada de pessoas e não conseguia comportar a todos. Muito tempo não se via uma cerimônia tão solene quanto tão familiar.

Naquela igreja, cada espaço e cada pessoa contemplavam um pouco do que o saudoso padre Bruno estava carregando para a eternidade. Marcas indeléveis de seu trabalho e de sua maneira de ser maravilhavam três gerações!

Em meio a tantas emoções o pensamento evocava bons e gratificantes momentos. Foi dele que recebi a primeira comunhão... naquela igreja havia sido crismado... há 12 anos e meio num clima muito especial ele oficiou o meu casamento... foi lá e por ele que os meus três filhos foram batizados... sem dúvida, uma bela interação marcada pela amizade e fraternidade (Figuras 2 e 3).

Após a missa, num instante, achavam-se ao redor do seu esquife vários amigos que, embora tivessem muita coisa em comum para contar a respeito daquele homem, manifestavam nos seus entreolhares um misto de tristeza, apreço, saudades, gratidão e reconhecimento. Eram vidas que se entrelaçavam.

Mas a igreja era pequena para albergar tanta gente e uma missa parecia pouco para marcar a sua despedida. Assim, no dia seguinte, às 9 horas, uma segunda missa de corpo presente foi concelebrada por dom Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo de São Paulo, seu conhecido desde a época em que era bispo da zona norte. Os bancos centrais da igreja foram removidos, a fim de facilitar o grande afluxo dos seus amigos. E quantas crianças estavam presentes! Como ele as amava!

26a foto 9b493Figuras 2 e 3 – Batismo da Giovanna, minha filha, em 1988, na Igreja de São Pedro Apóstolo. Na foto da direita, à frente, da esquerda para a direita: Enrico, Eduardo (primo), padre Bruno segurando a Giovanna no colo; Paula (prima) e Bruno (irmão). Atrás: Andréa e Pedro (padrinhos); Aida e Helio (pais).

Tais circunstâncias ímpares nada mais expressavam que o profundo reconhecimento de seus paroquianos e colegas eclesiásticos pelo profícuo trabalho realizado em sua singela vida.

Seu féretro se dirigiu para o cemitério do Santíssimo Sacramento onde foi sepultado.

O padre Bruno foi para Deus, mas seu exemplo indescritível de homem piedoso permanecerá entre nós. Quantos batizados, confissões, celebrações eucarísticas, casamentos, unções dos enfermos, cursos, palestras, conselhos ele ministrou?!... Quantas vezes por sua voz foi explicitado o Evangelho?!... De quantas reuniões ele participou?!... quantas vezes abençoou?!... quantas?!...

Dificilmente deixava a paróquia, pois era lá onde os seus fiéis o procuravam e queria estar sempre disponível para atender a todos. A qualquer hora e a qualquer tempo. Por isso, ele foi um lídimo e atual protagonista de São João Maria Vianney, o cura D’Ars, patrono do clero secular.

Padre Bruno foi um incansável pastor de almas, zeloso administrador das coisas de Deus. Jamais perdeu a noção dos valores eternos na condução dos homens, mormente num contexto fortemente marcado e, por vezes, obcecado pelos valores meramente sociais, materiais e temporais. Viveu para a salvação das almas, pois tinha como prioridade aproximá-las de Deus através da graça dos sacramentos. Em meio a um dos momentos mais dramáticos da história contemporânea da Igreja e do mundo, quando a crise de identidade sacerdotal e religiosa imiscui-se com as crises ideológica, social, educacional, cultural, econômica e moral, ele soube ser fermento na massa, luz nas trevas, sal que não perde o sabor. Tinha fé inabalável no Espírito Santo que conduz a barca de Pedro. Foi um grande homem e um santo sacerdote. Consumiu sua vida para Deus, na Igreja que muito amava, através da sua doação aos semelhantes. O calor e a luz da sua fé e de seu exemplo extintos pela sua morte continuarão a aquecer e a iluminar novas almas, pois dele receberam a sólida doutrina testemunhada, que muito transbordou ao longo de sua vida.

26b foto d4d90Na glória de Deus e para todo o sempre, o nosso querido cura – Padre Bruno, simplesmente! (Figura 4).