Todos nós, quando crianças, já passamos por perguntas como: O que você vai ser quando crescer? O que você gostaria de estudar? Qual é a sua vocação?
Muitos dos adolescentes, hoje em dia, não sabem claramente qual é a sua aptidão, o que gostariam de estudar, enfim, qual seria a sua preferência para profissionalização, apesar de maiores facilidades e multiplicidade de cursos e profissões disponíveis do que há quatro décadas.
Comigo foi diferente. Lembro-me de que, quando criança, aspirei ser inicialmente maquinista de trem, pois, muito apreciava andar no trenzinho que ligava a Serra da Cantareira a Santana (Figuras 1 a 3). Lembro-me que aguardava ansiosamente minha avó Norina, no portão da minha casa, quando ela me pegava para passear de trem quase que diariamente. Íamos sempre ao ponto final, na maioria das vezes à Cantareira, e noutras ao Tamanduateí, além do rio Tietê. Aliás, os trilhos passavam no solo onde, hoje, estende-se por via aérea o metrô. A maria-fumaça com seu barulho e energia ia vencendo seu trajeto sinuoso e lançando fagulhas de carvão incandescentes que costumavam entrar pelas janelas queimando os passageiros. A molecada gostava de passar graxa nos trilhos e de longe se divertia em ver as rodas da locomotiva girar em falso e não progredir pela falta de atrito. Ser maquinista de maria-fumaça me fascinava. Infelizmente, o trenzinho da Cantareira foi desativado em meados dos anos 60 (1964) e com ele também desmoronou meu sonho de ser maquinista.
Por vezes, aspirei ser bombeiro, pois, na época, eles participaram de algumas operações grandiosas que foram muito divulgadas. Era atraente a ideia de salvar pessoas em perigo e de ser considerado herói.
Não posso me esquecer tampouco que tencionei ser astronauta. Quando criança era muito falada nas escolas, jornais, rádio e televisão a epopeia do homem que conquistara o espaço, navegando ao redor da Terra e se preparando para chegar à Lua, façanha essa alcançada cerca de dez anos depois (1969).
Mas uma profissão que muito me animou a seguir desde criança foi a de ser médico. Não tinha nenhum parente como precedente. Aliás, ser médico naquela ocasião era uma grande honra e a dedicação no seu exercício, um sacerdócio. Não era fácil entrar na faculdade. Mais uma vez a associação de curar pessoas doentes e de salvar estava presente em minha vida. Certamente, tive como estímulo a atuação do dr. Marçal, médico da família, clínico e cirurgião de antigamente. Quando ele adentrava nossa casa parecia que uma parcela da deidade chegava ao nosso lar. Boa parte da melhora dos pacientes se devia à sua presença.
Outros estímulos foram os seriados na televisão do dr. Kilder e do dr. Bencase, este um médico negro norte-americano. Ambos estavam sempre a serviço dos pacientes hospitalizados e envolvidos com casos graves, difíceis e delicados. A situação deles ia sedimentando em mim uma crescente e inexorável vontade de segui-los.
Desde tenra idade jamais abandonei o ideal de ser médico. Contudo, devo salientar que, quando adolescente, também desejei seguir o caminho religioso, tornando-me padre. Sempre fui atraído por Jesus Cristo e sua mãe, Maria Santíssima; pela história do cristianismo, pelos Evangelhos, pela Igreja Católica e sua hierarquia; pela sequência dos papas; pelo trabalho indefesso dos missionários em terras distantes e inóspitas; pelos mártires da fé cristã; pela vida dos santos e santas que sempre fertilizaram o mundo; pela riqueza de carismas das dezenas e dezenas de congregações religiosas existentes, enfim, pelos inúmeros serviços pastorais e sociais em favor do próximo...
Ser sacerdote associava-me também à ideia de ser um pouco santo, um pouco herói, um pouco pai e um pouco médico, por ser o cura das almas.
Nessa ocasião não me faltaram exemplos de dedicadas irmãs de caridade e de obstinados sacerdotes. Um deles, com quem convivi por muitos anos, foi o saudoso padre Bruno Carra. Ele tinha seus defeitos, mas também suas virtudes, cuja dedicação e santidade os suplantavam. Foi um grande homem de Deus e muito me ajudou a conhecê-Lo e amá-Lo. Contudo, o tempo mostrou-me que não era digno do sacerdócio, pois não reunia predicados que julgava serem necessários. Não obstante a minha desistência a uma vida religiosa consagrada, jamais renunciei ao cristianismo e seus valores transmitidos pela Igreja Católica. Aliás, tais premissas muito me têm orientado na vocação médica até os dias de hoje.
Lembro-me, nitidamente, quando estava no pré-primário. Na ocasião tinha seis anos quando participei de um teatro infantil onde o motivo principal era uma criança enferma representada por uma boneca. Sua mãe, encenada por outra coleguinha chamada Sheila, estava aflita com a doença do filho. A minha inesquecível primeira professora, chamada Jacinta, já sabia que eu falava em ser médico e me escolheu para protagonizá-lo (Figuras 4 e 5). A pequena trama se desenvolveu em meio a uma plateia formada pelos pais dos alunos. Após o exame clínico da criança, o doutor conseguiu tranquilizar a mãe e curar a enfermidade do filho com o cumprimento da medicação prescrita.
Passaram-se os anos e ainda via a Sheila frequentemente no Ginásio Santa Gema das Irmãs Passionistas, onde estudávamos, além de morarmos próximos um dos outro, no mesmo bairro. Após o ginásio (hoje, oitava série do primeiro grau), cada um foi tomando o seu rumo, mas ainda nos encontrávamos eventualmente, pois, tornara-se amiga no colegial da Aida Lúcia, minha namorada e futura esposa. Terminada essa fase foram poucas as vezes que nos vimos. Ela casou-se e teve dois filhos e muita coisa aconteceu em nossas trajetórias de vida.
Um belo dia recebo, prazerosamente no consultório, o Rodrigo acompanhado de sua mãe Sheila, para avaliação médica. Agora não era um teatro encenado havia 39 anos! Era a realidade de um sonho acalentado desde a minha infância e com os mesmos protagonistas. O filho era de carne e osso. Entre exames, orientações e conversas, recordamos saudosamente daquela encenação no jardim de infância como se fora ontem. O tempo parecia ter corrido na velocidade da luz. Não obstante as intempéries que cada qual viveu ao longo dos anos, aquilo tinha sido um momento indelevelmente significativo em nossa infância, que o tempo presente soube muito bem ratificar.
1 Texto escrito no ano 2000.
Anais da XIII Jornada Médico-Literária Paulista, realizada na cidade de São Paulo, de 27 a 29 de agosto de 2015, páginas 29-30 (publicação sem fotos).