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  • Fonte: Raquel Naveira

      Raquel Naveira cronicas b2714O título hebraico deste livro bíblico pode ser traduzido literalmente por O Cântico dos Cânticos. É o maior cântico nupcial já escrito. Seu autor, Salomão (nome que vem de shomô, shalom e significa “Paz”), filho de Davi com Bate-Seba, terceiro rei de Israel, que governou durante quarenta anos com sabedoria, prosperidade, riquezas. Ordenou a construção do templo de Jerusalém, 479 anos depois do Êxodo. Salomão foi um escritor prolífico de 1005 cânticos. Seu nome consta no versículo inicial: “Cântico dos cânticos, que é de Salomão” e em outros trechos espalhados pelo livro. Ele se identifica com o noivo. Talvez no começo tenha sido uma série de poemas trocados entre ele e a noiva.

     O propósito da inclusão dos Cantares de Salomão nas Escrituras é ressaltar a origem divina da alegria e dignidade do amor humano no casamento. Deus quer que saibamos que a sexualidade pode ser pura, sadia, nobre. Oferece um modelo correto entre dois extremos: o abandono do amor conjugal para a adoção de perversões sexuais e infidelidade de um lado e a abstinência sexual que nega o valor positivo do amor físico, de outro.

     São oito capítulos, em que surgem diferentes personagens: emissores que são vozes, o noivo Salomão, a noiva Sulamita, o coro das filhas de Jerusalém (escravas da realeza) e ainda os guardas das vinhas.

     No clima místico e sensual dos Cantares, onde se misturam amor e erotismo, surgiu meu poema “Sulamita”:

Há nela alguma coisa de egípcio:

Olhos oblíquos,

Jeito felino

De quem cai de pé

Mesmo quando salta um precipício.

 

Há nela alguma coisa de egípcio:

Um mistério,

Um perfume de nardo,

A pele morena

Onde o sol deixou o seu resquício.

 

Há nela alguma coisa de egípcio:

Tudo que toca

Vira ídolo,

Joia rara,

Fina seda de comércio fenício.

 

Há nela alguma coisa de egípcio:

Escreve em papiros

Poemas tão indecifráveis

Que alguém pensaria

Ser uma nova forma de suplício.

 

Há nela alguma coisa de egípcio:

Seu amado é um ramalhete de mirra

Entre seus seios,

Um vinho embriagador,

Um vício.

 

Há nela alguma coisa de egípcio,

De princesa estrangeira,

De gazela,

De Sulamita

Que se entrega a um rei israelita.

     O cântico salomônico divide-se em duas partes: o início do amor (capítulos 1 a 4) e o amadurecimento, o apogeu, a realização plena do amor (capítulos 5 a 8). A linguagem revela alegria e aliança. Honra-se assim o matrimônio e o leito sem mácula, conforme está recomendado em Hebreus 13:4.

     Segundo o poeta mexicano, Ocatvio Paz (1914-1998), “o sentido religioso do poema é indistinguível de seu sentido erótico profano: são dois aspectos da mesma realidade”. E acrescenta:

     “Esta coleção de poemas de amor profano, uma das mais belas já criadas pela palavra poética, nunca deixou, ao longo de mais de dois mil anos, de alimentar a imaginação e a sensualidade dos homens. A tradição judaica e a cristã interpretam esses poemas como uma alegoria das relações entre Jeová e Israel ou entre Cristo e a Igreja.”

     Paz lembra que a mesma linguagem mística eivada de erotismo é encontrada no “Cântico espiritual”, de São João da Cruz, um poema intenso e misterioso. Impossível ler seus poemas unicamente como textos eróticos ou como textos religiosos. São um e outro e algo mais: a magia poética, pois a imaginação e o desejo são os agentes que movem o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. O erotismo é a sede do outro. O sobrenatural é a radical e suprema Outridade. A comunhão é o festim entre dois amantes. Na experiência dos místicos, o erotismo transfigura-se, mas não desaparece. Muda, transforma-se, sublima-se, mas nunca deixa de ser que é: impulso sexual.  O amor é escolha, magnetismo, predestinação. O erotismo, aceitação. O amor é atração por uma pessoa: corpo e alma. O amor atravessa o corpo e procura a alma no corpo e na alma, o corpo. A pessoa interior e inteira. Destino e liberdade se cruzam no amor. Ventura e desgraça. A geração, o desejo de reprodução, é divino. Geramos corpos, almas, ideias e pensamentos. O Cântico dos Cânticos comprova que o amor pode nos elevar ao êxtase e à mais alta contemplação.

     Para falar das sensações amorosas, Salomão faz referência a pelo menos quinze espécies diferentes de animais e vinte e uma espécies de plantas. O estado virgem da noiva é comparado a um “jardim fechado” (4, 12: “Jardim fechado és tu, irmã minha, esposa minha, manancial fechado, fonte selada. Os teus renovos são um pomar de romãs, cipreste, nardo, açafrão, cálamo e canela com toda sorte de árvores de incenso, mirra e aloés, com todas as principais especiarias. És a fonte dos jardins.”) e a consumação do casamento como entrar no jardim para colher seus frutos excelentes (4, 16: “Levanta-te, vento norte, vem tu, vento sul; assopra no meu  jardim, para que se derramem os seus aromas. Ah! Se viesse o meu amado para o seu jardim, e comesse os seus frutos excelentes!”). Citemos ainda este trecho para saborearmos mais sinestesias: “Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales. Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha amiga entre as filhas. Qual macieira entre as árvores do bosque, tal é o amado entre os filhos, desejo muito a sua sombra e debaixo dela me assento; e o seu fruto é doce ao meu paladar. Levou-me à sala do banquete, e a sua bandeira era o amor.” (2, 1-5) Quanta beleza nesse hino de amor!

     Fiz uma releitura do Cântico dos Cânticos, no poema “Jardim Fechado”, que deu título à minha Antologia Poética, com uma mostra de meus mais de 40 anos dedicados à Poesia, editada pela Vidráguas, em 2015. Diz o poema:

Vem, noivo meu,

Entre no jardim

Fechado,

Selado,

Cheirando a nardo e jasmim.

 

Vem, noivo meu,

Dá volta ao muro,

Abre a porta estreita

E, no canteiro de mandrágoras,

Cinge-me o corpo com teus braços

Bem na altura do rim.

 

Vem, noivo meu,

Até o centro

Onde há fontes e repuxos

E uma gruta macia

Como cetim.

 

Vem,

Meu delfim,

Atravessa o parque,

O lago de lótus

E prova os frutos deliciosos

Que brotam no íntimo

Da alma que há em mim.

 

Vem,

Gentil serafim,

Peça ao vento que sopre,

Que se derramem aromas

De canela e alecrim.

 

Vem,

Jardineiro fiel,

Sobe a escadaria

Que parece não ter fim

E nos leva juntos ao céu.

Sou jardim fechado,

Penetra neste vargim.

    O Cântico dos Cânticos é um reflexo da história do Jardim do Éden, uma via de reconciliação com a natureza, onde vislumbramos, através do amor e do erotismo, a possibilidade do paraíso.

*RAQUEL NAVEIRA é escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infantojuvenis. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-ALTER, Robert e KERMODE, Frank (organizadores). Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997.

-ALMEIDA, João Ferreira de. Bíblia de Estudos Pentecostal. Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPDA), 1995.

-NAVEIRA, Raquel. Via Sacra. Campo Grande/MS: Grupo Executivo, 1989.

________________ Jardim Fechado. Porto Alegre/RS: Vidráguas, 2016.

-PAZ, Octavio. A Dupla Chama- Amor e Erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.