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  • Fonte: Raquel Naveira

Medicina é a ciência que tem por fim prevenir e curar doenças. É exercida pelo homem desde a mais remota antiguidade. Como relacionasse os fenômenos naturais com a manifestação de poderes sobrenaturais, a Medicina teve, a princípio, um caráter religioso. Umas divindades tinham poder profilático, outras, curador, e outras aliavam ambas as modalidades de proteção médica.

Raquel Naveira Fotos 3 7b2b4A profissão de médico encontrava-se já regulamentada no Código de Hamurábi, havendo considerável desenvolvimento da medicina entre os assírios e os babilônicos. Conheciam as virtudes terapêuticas dos banhos, das ventosas, das compressas, bem como tinham noções de higiene. Nível bem mais elevado foi atingido pela medicina egípcia. Os papiros dão indicações sobre seu considerável desenvolvimento, sobretudo quanto às aplicações da cirurgia e da farmácia. Os conhecimentos químicos revelados pela arte do embalsamamento influenciaram a prática médica. A medicina da Índia misturava-se com magia e filosofia. Os judeus tinham terapêutica singela e natural, cirurgia desenvolvida e codificaram preceitos relativos à habitação, à higiene sexual, ao vestiário, cumpridos pelo povo como normas de inspiração divina. A medicina chinesa está mesclada de elementos fantasiosos. Foram peritos em massagens e ginásticas. Na civilização helênica, houve acentuado fundo religioso , bem como a influência de práticas médicas dos povos vizinhos. O deus da medicina seria Asclépio, o Esculápio dos latinos. Data de então o culto da serpente e sua relação com Esculápio, que usava um cajado, em volta do qual se enroscava uma cobra, símbolos do auxílio e da sagacidade.

Hipócrates é considerado o pai da Medicina. Sistematizou a ciência médica de seu tempo. Aristóteles elucidou a Fisiologia e a Anatomia humanas.

No período medieval houve uma decadência da Medicina, pela concentração de cultura em mãos de sacerdotes e pela superstição. Os bizantinos distinguiram-se na conservação de textos médicos. Os árabes criaram bibliotecas, hospitais, consultórios.

No Renascimento, predominou a Medicina Escolástica. A cirurgia foi renovada e Paracelso teve a idéia da base químico-biológica da Medicina.

O século XVIII marcou grande avanço com a descoberta do microscópio. Surgiram a Anatomia Geral, a Neurologia, a Dermatologia, a humanização da Psiquiatria e progrediu a Pediatria.

O século XIX marcou novo avanço com a prática de laboratório e as descobertas de Pasteur. Acentuou-se o caráter social da medicina. Surgiram a Embriologia e a Endocrinologia. A anestesia facilitou o trabalho do cirurgião.

No século XX, a Medicina refletiu o progresso geral da técnica: emprego de antibióticos, sulfas, radiações, novos processos cirúrgicos. Surge a Psicologia.

O livro O Médico, do pedagogo, poeta e filósofo, Rubem Alves , um dos intelectuais mais famosos e respeitados do Brasil, apresenta-nos uma meditação humana a respeito dessa figura ao mesmo tempo lendária e humana que é o médico.

Rubem Alves reflete que antigamente a simples presença do médico irradiava vida, eles eram também uma espécie de feiticeiros, detentores de poder sobre a vida e sobre a morte. Naquele tempo os médicos sabiam das coisas. O médico era um herói romântico, vestido de branco.

Hoje, ser médico transformou-se num risco e ninguém acredita na sua santidade. São apenas portadores de conhecimentos especializados, que vendem serviços. Os médicos têm saudade de uma imagem que não existe mais.

Para Rubem Alves, a doença, emissária da morte e da perda, tem função iniciática: é por meio dela que se pode chegar a um maior conhecimento de nós mesmos. As doenças são sonhos sob a forma de sofrimento físico. A vida é uma entidade estética. O homem cria beleza como remédio para sua doença, como bálsamo para seu medo de morrer. A criação é fruto do sofrimento. Os artistas são doentes.

Vida e Morte são irmãs. A morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa nos convidando à sabedoria da vida. A fé bíblica pondera que somente Deus pode curar. A cura é um dom divino oferecido aos homens. O médico, instrumento de algo superior, deveria sentir afeição profunda pelo ser humano, afagando suas dores e eliminando seus males.

Que livro magistral o Médico de Homens e de Almas , de Taylor Caldwell! Conta a história de São Lucas, o autor do Terceiro Evangelho, amigo dileto de Paulo, um dos seus mais fiéis colaboradores, o glorioso médico, um homem complexo e fascinante. Sua história é a história da peregrinação dos homens através das trevas da vida, do sofrimento e da angústia, da dúvida e do cinismo. Lucas, humildemente, reconhece Jesus como O Médico e se põe a seu serviço, depois de longas lutas interiores.

O acadêmico Murilo Melo Franco nos esclarece que sempre houve entendimento da Medicina com as Letras. Vários médicos foram também escritores. São pessoas inspiradas num ideal de beleza, de ciência e de cultura. Combinam a arte de medicar com a magia de escrever. Sentem atração pelas inquietações literárias. São mestres do bisturi, das receitas, dos laudos, das radiografias, mas também amantes da literatura, que encontram refúgio e consolo nos romances, nos ensaios, nos poemas.

A Academia Brasileira de Letras, com seu prestígio, solenidade e mistério, tem toda uma linhagem de magníficos médicos e cientistas, como os que se seguem: Francisco de Castro, baiana, professor de Clínica Médica, autor do livro de poesia, Harmonias Errantes; Osvaldo Cruz, pioneiro da Medicina Experimental, que erradicou a febre amarela no Rio de Janeiro; Aloísio de Castro, autor de obras musicais, literárias e médicas, como Semiótica do Sistema Nervoso; Fernando Augusto Ribeiro de Magalhães, obstetra e ginecologista, fundador da Pró-Matre, excepcional orador; Miguel Couto, reformador do ensino da Clínica Médica, autor de Diagnóstico Precoce da Febre Amarela; Miguel Osório de Almeida, criador da teoria matemática da radioterapia, escreveu o romance Almas sem abrigo; Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, o Antônio Zilo, escreveu dois livros de prosa poética: Manchas e Novas Manchas; Clementino da Rocha Fraga, que publicou Fronteiras da Tuberculose; Júlio Afrânio Peixoto, baiano, doutorou-se com a tese Epilepsia e Crime, diretor do Instituto Médico-Legal; João Guimarães Rosa atuou como médico voluntário junto às tropas que combatiam o movimento constitucionalista de São Paulo, entrou na carreira diplomática, chefiando o Departamento de Fronteiras do Itamarati e escreveu o célebre romance épico, Grande Sertão: Veredas; João Peregrino da Rocha Fagundes Júnior, professor e presidente da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, escreveu o livro de contos Histórias da Amazônia; Maurício Campos de Medeiros, psiquiatra, autor de Psicoterapia e suas modalidades; Antônio da Silva Melo escreveu livros que alcançaram as fronteiras da antropologia, da moral e da filosofia como Religião: prós e contras e Estudos sobre o negro; Carlos Chagas Filho, organizador do Instituto de Biofísica; Deolindo Augusto Nunes Couto, piauiense, fundador do Instituto de Neurologia, autor de Clínica Neurológica. Além de Ivan Lins e Afrânio Coutinho, diplomados em Medicina, mas que não exerceram a profissão, um, atraído pelo positivismo e outro pela crítica literária.

A Academia tem ainda Ivo Pitanguy, o famoso cirurgião plástico, mestre da estética.

Todos esses médicos não teriam se tornado cultores das letras se não tivessem, como afirma Celso Barros Filho, “a mente moldada à contemplação do lado espiritual do homem, onde se revela o ser sensível, o artista, com a capacidade de exercitar o talento pelo lado da emoção e fortalecer a vontade na busca do seu ideal”.

É interessante observar que quase todos esses médicos-escritores foram também professores, formaram escolas, gostavam de ensinar, pois uma particularidade dos grandes homens, como nos explica o Dr. Ivo Pitanguy, pois “o homem de conhecimento sabe que o gênio solitário está fadado ao esquecimento e para perpetuá-lo deve difundir o seu saber aos mais jovens, mantendo ao mesmo tempo acesa a chama da curiosidade permanente”. Há renovação no confronto diário com os alunos.

Neste ponto, vamos reforçar a figura do extraordinário médico, Osvaldo Cruz, que nasceu em São Luís de Paraitinga, São Paulo, no dia 05 de agosto de 1872 e morreu em Petrópolis, Rio de Janeiro, a 11 de fevereiro de 1917. Estudou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de 1903 e empregou todos os esforços para debelar em três anos, conforme prometera ao governo, a febre amarela. Incompreendido, diante da oposição do povo em serem aplicadas medidas enérgicas de profilaxia, pediu demissão. O presidente Rodrigues Alves recusou-a e deu-lhe apoio integral na execução de sua obra higienista. Em 1908, quando houve uma epidemia de varíola, a vacinação foi aceita como medida necessária. Durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, novamente foi solicitada sua cooperação para o saneamento da zona em que a estrada operava e ele conseguiu uma redução significativa do número de mortes. Escreveu a tese de doutorado, A Água como Veículo dos Micróbios e Relatório sobre a Moléstia Reinante no Porto de Santos.

O médico-escritor gaúcho, Moacyr Scliar, filiado à corrente do realismo mágico que varreu as literaturas latino-americanas e a brasileira nas décadas de 70 e 80, fez sua estréia com História de um Médico em Formação. Sem abandonar o exercício da medicina, publicou vários livros, entre eles Sonhos Tropicais, em que narra a saga de Osvaldo Cruz.

O médico Pedro Nava provocou grande impacto no surto memorialístico do movimento modernista brasileiro com sua obra monumental. A revelação do prosador memorialista foi tardia, a partir de 1972, quando da publicação de seu primeiro volume de memórias, o Baú de Ossos. Escreveu-as com humor, vasta erudição e experiências literárias.

Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, Círio Perfeito, Balão Cativo, são ao todo seis volumes de memórias. Pedro Nava preocupou-se com documentos, garantindo ao leitor a veracidade dos relatos.Constituiu um verdadeiro arquivo com questionários dirigidos aos biografados, depoimentos de terceiros e apontamentos que acumulou através do tempo.

No seu projeto, Pedro Nava seguiu uma certa cronologia distinguindo etapas de origens, infância, estudos e formação, finalmente o exercício da profissão escolhida, a Medicina, numa abrangência de mais de meio século. Dá início ao longo depoimento sobre o ensino médico da época, percalços e progressos, ao lado de perfis de colegas de estudo e de profissão, de ilustres professore com destaque aos grandes médicos do período.

Conforme Beira-Mar, o ingresso do memorialista na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em 1923, foi por vocação e exemplo de família, não obstante seu gosto literário e pendor artístico.

Em Galo das Trevas predomina o relato do exercício da Medicina, primeiro em Minas Gerais- Belo Horizonte e interior, a seguir no oeste paulista e finalmente no Rio de Janeiro. Viveria a experiência da revolução de 1930 em Belo horizonte e de 32 no interior de São Paulo. Deixa-nos um painel da vida médica brasileira em hospitais, pronto-socorros, clínicas e consultórios. História da medicina repassada pelos elogios justos ou merecidos dos grandes médicos das 3 ou 4 primeiras décadas deste século e pelas críticas severas aos maus colegas de profissão.

Em suma, as memórias de Pedro Nava são um vasto e minucioso panorama de uma época vivida, sentida, investigada, poética e criticamente.

Lembrei-me de dois personagens médicos. Primeiramente, o Dr. João Semana do singelo livro As Pupilas do Senhor Reitor, do romântico português, Júlio Diniz, cuja temática gira em torno da tese segundo a qual a vida simples e natural torna as pessoas alegres e felizes. Júlio Diniz descreve o campo, os tipos humanos, os hábitos e as idéias, com o propósito de uma moralização de costumes pela vida rural e pela influência de um clero convertido ao liberalismo. As personagens são autênticas, são cópias do natural. O Dr. João Semana é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que no tempo da estada de Júlio Diniz em Ovar, exercia a profissão médica com grande sucesso naquela região, conforme explica o crítico literário Egaz Moniz.

O outro é o “quase médico”, Cirino, do livro do romântico brasileiro, Visconde de Taunay, Inocência. Inocência é um romance regionalista, onde Taunay descreve os hábitos, costumes e cenários da vida do sertão do sul de Mato Grosso, que ele tão bem conheceu nas viagens e campanhas militares. A história diz respeito a um caso de amor contrariado, tendo como protagonistas uma meiga moça de nome Inocência e um “médico” viajante, o Cirino. Como esquecer a cena, em que ele, jovem, de “presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelo cortados à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido” penetrou no quarto de Inocência doentinha, pálida, de uma beleza deslumbrante, à luz de uma vela de sebo? Cirino, impressionado, receitando-lhe sulfato, quina e folhas de laranjeira?

Está fazendo o maior sucesso o livro Medicina Espiritual- O Poder Essencial da Cura, do cardiologista americano, Herbert Benson e da jornalista, Marg Stark. O livro sintetiza algumas recentes descobertas sobre a relação entre mente e saúde corporal. Evidências científicas mostram como são relevantes as emoções e os pensamentos na prevenção e na cura de inúmeras doenças. A ciência está respaldando as práticas que as pessoas cultivam há milhares de anos, como meditar, fazer ioga, relaxar e rezar para despertar a cura interior. Mostra que fé religiosa é fator de manutenção da saúde.

Esses médicos-escritores compreenderam em plenitude o sentido humanístico da vida como um todo. Cultuaram a fé na ciência, aliaram a racionalidade da medicina à sensibilidade literária. Foram motivados na Medicina e na Literatura pelo amor, pela compaixão e pelo profundo respeito a seu semelhante.

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubem. O Médico. Campinas/SP: Papirus, 2002.

Boletim da Academia Paulista de História- ano XV, nº 105, abril/2003. Artigo: “São Lucas, o historiador cuidadoso...”, de Luiz Gonzaga Bertelli.

CALDWELL, Taylor. Médico de Homens e de Almas. Rio de Janeiro: Record, 5ª ed.

CASTELLO, José Aderaldo. e A Literatura Brasileira: Origens Unidade, vol II. São Paulo: Edusp, 1999.

DINIZ, Júlio. As Pupilas do Senhor Reitor. ColeçãoObras imortais da nossa literatura”. São Paulo: Três, 1972.

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MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos Textos. São Paulo: Cultrix, 19ª ed.

Revista Brasileira. Academia Brasileira de Letras. Fase VII-Out-Nov-Dezembro de 2002. Ano IX, nº 33.

SCLIAR, Moacyr. Sonhos Tropicais. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, 5ª ed.

-TAUNAY, Visconde de. Inocência.Coleção Obras imortais de nossa literatura. São Paulo: Três, 1972.