Aquele tinha sido um momento oportuno para sadias recordações. O Bruno, meu segundo filho, tinha acabado de entrar em medicina na Universidade da Serra dos Órgãos em Teresópolis, estado do Rio de Janeiro.
Já se tinham passado 29 anos e meio que eu conseguira o meu grande sonho de vencer o vestibular para medicina.
Estávamos na cozinha entre dois álbuns densos de fotografias: um da “A Moribunda”, nome dado à república onde morei, e o outro, mais profissional, da solenidade de formatura (Figuras 1 e 2).
1 Texto escrito cerca de 30 anos após meu ingresso na Faculdade de Medicina de Jundiaí, ocorrido em 1973.
Cada foto que víamos tinha um valor profundo e trazia-me recordações significativas.
Lembro-me que participei ativamente do trote dado aos calouros. Não importava que quebrassem ovos e jogassem farinha na minha cabeça... cantar em público... pedir esmolas... angariar remédios... ser chamado de bicho burro... tudo era uma verdadeira consagração para mim (Figuras 3 e 4).
O eminente anatomista Olavo Marcondes Calazans (Figuras 5 e 6) foi um dos nossos primeiros professores. A sua sabedoria era aliada à sua simplicidade e humildade, transmitindo-nos conceitos técnicos e humanísticos indeléveis.
Ao lado da porta do Laboratório de Anatomia da querida, saudosa e inesquecível Faculdade de Medicina de Jundiaí (Figuras 7 a 11), havia uma oração que marcaria profundamente a minha vida como acadêmico, como médico e como pessoa. Era a oração “Ao Cadáver Desconhecido”, de Rabisansk, datada de 1876. Ela assim se expressa:
Oração ao Cadáver Desconhecido
Ao curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te de que esse corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança daquele que em seu seio agasalhou.
Sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudade dos outros que partiram; acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que por ele se tivesse derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece.
Seu nome, só Deus o sabe; mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade que por ele passou indiferente.
Figuras 8 e 9 – À esquerda, Jayme Rodrigues, fundador da Faculdade de Medicina de Jundiaí, em 1968. Em vida ele recebeu o título de Professor Honorário, além dar nome ao Prêmio “Doutor Jayme Rodrigues”, conferido, a cada ano, ao doutorando de maior destaque durante todo o curso médico; e, à direita, o símbolo dessa tradicional casa de ensino.
Foi com incontida emoção que dei ao meu filho uma cópia da “Oração ao Cadáver Desconhecido”. Aquele gesto carregava um misto de nostalgia aliada a um sentimento de bem-querer, desejando-lhe que o caminho a ser trilhado fosse tão feliz e proveitoso quanto aquele que eu tinha percorrido.
Nas aulas práticas de anatomia podiam-se usar luvas, numa época que inexistia a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – Aids. Entretanto, o velho e sábio professor Calazans ensinou-me a dissecar os cadáveres sem luvas, como se, junto com o tato e o cheiro forte de formol, ao tocá-los com minhas próprias mãos eu pudesse prestar-lhes um gesto de carinho e gratidão pelo ensinamento oferecido.
O professor Calazans dizia: “vocês vão levar seis anos para se formar e outros seis para se conformar”, querendo com isso sinalizar que o caminho seria longo e espinhoso. Entretanto, outra de suas máximas era que “o curso todo de medicina valeria a pena,
mesmo que fosse para se fazer tão somente um só diagnóstico ou para mitigar a dor de um só enfermo”.
Antônio Sesso (Figura 12) foi o nosso professor de histologia. Era um homem de poucas palavras, competentíssimo e justo. Lembro-me que tínhamos aulas até de sábado à tarde e que era-nos reservado um tempo longo para ler a matéria em classe, antes de ser ministrada a parte expositiva. Com isso, conseguíamos aprender muito. Lemos e relemos literalmente um razoável tratado ao longo do ano letivo.
Douglas Zago era assistente da cadeira de histologia, mas também o responsável pelo curso de embriologia. Tinha grande didática. Era calmo, amigo e fraterno. Sempre dizia: “gostaria de saber tudo o que eu sei na idade de vocês!”. Zago foi escolhido cinco anos depois para ser homenageado em nossa formatura.
Metry Bacila foi o titular de bioquímica. Era austero e causava certo medo entre os alunos. Suas provas eram difíceis. Tinha dois assistentes: a professora Aidesina e o professor Osmar Mota, que os alunos logo abreviaram para “dr. Marmota”, sem que ele soubesse, é claro.
Metry Bacila, posteriormente, foi eleito diretor da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Graças à sua atuação foi escolhido pela turma para ser o nosso patrono.
Lembro-me também que havia um advogado, versátil no discurso, que ministrava, às sextas-feiras, pela manhã, um Curso sobre Problemas Brasileiros. Não me recordo do seu nome, apenas de seu apelido – “Morcegão”. Não sei se era porque trazia sempre consigo o seu guarda-chuva, quer fizesse chuva ou sol, e que muitos chamavam de “morcego”, ou se era porque tinha olhos que saltavam sobre suas pálpebras.
A quase totalidade de nossos professores era da Universidade de São Paulo, portanto, de elevado nível.
No segundo ano tivemos ainda meio semestre de neuroanatomia. Como disciplina nova tivemos fisiologia, cujo titular era o professor José Carlos da Rosa. Era lindo começar a conhecer o funcionamento dos sistemas e do organismo. Havia dois assistentes: Pedro Lara e Miguel Nassif. Com ambos comecei a desenvolver extracurricularmente meu gosto pela pesquisa e pela realização de trabalhos científicos, que foram posteriormente publicados. Tive o privilégio de ser selecionado monitor de fisiologia por dois anos subsequentes.
No segundo ano tivemos também parasitologia com o professor Dino Pattoli, muito dedicado e paciencioso. Sua filha, Silvana Alice Pattoli, era aluna da nossa turma.
Naim Sawaia, cardiologista com profundos conhecimentos de estatística, foi o nosso professor de bioestatística e também do Curso de Embriologia do Coração. A sua didática, paciência e descontração eram gigantes.
O curso de microbiologia e imunologia foi igualmente inesquecível, pois tivemos o privilégio de contar com o fantástico professor Carlos da Silva Lacaz (Figura 13), eminente médico da medicina brasileira. Além da riqueza das aulas teórico-práticas, pudemos sorver de sua vasta cultura lições eloquentes e inolvidáveis da história da medicina, de vultos do passado, assim como de humanismo.
À época, Carlos da Silva Lacaz tornou-se secretário de Higiene e Saúde do Município de São Paulo. Adhemar Purchio era o seu grande assistente e foi posteriormente o paraninfo escolhido da nossa turma. Todo mês havia provas, e como incentivo ele ofertava livros científicos aos três primeiros colocados.
O curso de genética médica foi muito bem ministrado. Entretanto, a aridez da matéria fazia com que essa fosse uma das poucas disciplinas não atraentes para mim (Figura 14).
O terceiro ano foi marcado pelo entusiasmo das aulas de farmacologia do professor Fernando Varela de Carvalho; pelo curso denso e significativo de patologia liderado pelo professor Antônio Cardoso de Almeida; pela disciplina de técnica operatória, cujo titular era o professor Sergio de Moura Campos, sendo todos ilustrados com enriquecidas aulas práticas. Esse ano foi também marcado pelas aulas de psicologia médica do eminente psiquiatra professor Aníbal Cipriano da Silveira Santos, que seria três anos depois eleito diretor da escola.
Entretanto, com as aulas de semiologia iniciava-se a tão esperada oportunidade de manter contato com os pacientes, razão maior do nosso curso médico.
O relacionamento constante e progressivo com os enfermos e com os diversos setores do hospital foi deveras gratificante. Tive o privilégio de ser novamente selecionado
monitor de clínica médica durante um ano e meio, fato esse que aumentou ainda mais a minha atuação hospitalar.
O quarto ano e a metade do quinto foram preenchidos pelo ensino de diversas disciplinas clínico-cirúrgicas. Nesse período tive também o privilégio de conseguir, através de concurso, um estágio extracurricular de obstetrícia na afamada Casa Maternal e da Infância, em São Paulo, o que muito me valeu como aprendizado. Aí tive a honra de conhecer e aprender preciosidades da medicina e, particularmente, da obstetrícia, com o afamado professor da Escola Paulista de Medicina e da Faculdade de Ciências Médicas de Santos, Domingos Delascio (Figura 15), então diretor da entidade.
Também como quartoanista foi extenuante, mas muitíssimo gratificante, juntamente com o colega terceiroanista, Elbens Marcos Minoreli de Azevedo, então responsável pelo Departamento Científico do Diretório Acadêmico Professor Alphonso Bovero (1871-1937, Figura 16), fundar a revista científica “Perspectivas Médicas” (Figuras 15 e 16), da Faculdade de Medicina de Jundiaí. Em 1976 fui seu vice-diretor (vice-editor ou editor associado) e, em 1977, seu diretor (editor).
Os últimos 18 meses, ou seja, o segundo semestre do quinto ano e todo o sexto ano, foram de internato. Nele rodiziávamos nas várias especialidades médicas, a fim de aumentar o nosso conhecimento prático. Iniciava-se também a época oficial dos plantões noturnos, incluindo finais de semana e feriados. Tudo era novidade e, apesar dos esforços que fazíamos para aprender, pois medicina não é só conhecimento, mas tirocínio também, tudo valeu a pena!
As aulas de medicina legal, sobretudo as necropsias, foram momentos muito edificantes e de reflexão. Elas seriam ótimas terapias para portadores de doenças do orgulho, da inveja e do menosprezo para com seus semelhantes!
As experiências e as lembranças de momentos jocosos são muitíssimas. Certa feita estávamos de plantão no pronto-socorro do hospital-escola São Vicente de Paulo, na noite do dia 24 de dezembro. A fim de aplicar um trote num dos nossos companheiros, forjamos uma ficha cujo paciente chamava-se Noel’s Father, que morava no Polo Norte e que tinha chegado de trenó. Quando era quase meia noite, avisamos-lhe que havia uma ficha e que era a vez de ele atender. E assim o fez.
Abriu a porta de vai-e-vem e, embora não houvesse ninguém na espera, chamou por Noel’s Father. Não houve resposta e pensou que poderia estar fora do recinto e chamou com voz ainda mais forte, por mais uma ou duas vezes. Ele só se deu conta do trote quando percebeu que todos estávamos incontidamente dando gargalhadas. Como esse momento, tivemos inúmeros outros alegres, tristes, esportivos, culturais e reflexivos, que foram inapagáveis na nossa trajetória acadêmica.
No internato (Figuras 19 a 29) tivemos a oportunidade de estagiar psiquiatria e moléstias infecciosas, respectivamente nos famosos Hospitais do Juqueri e Emílio Ribas. Eu, particularmente, ainda tive o privilégio de ser uma vez mais monitor, durante seis meses, da disciplina de urologia.
Lembro-me vivamente de que, desde o primeiro ano, estudava com muito afinco todas as matérias, pois queria aprender o máximo possível. A cada disciplina clínica que iniciava estimulava-me a segui-la profissionalmente. Almejava ser um médico mais completo possível. Decidi pela urologia, pois, além de ser uma especialidade cirúrgica, era prática, objetiva e resolvia muito bem a maioria dos casos atendidos. O titular era o professor Sami Arap (Figura 30), que viria ser, alguns anos depois, professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Tinha como assistente o dr. Cláudio José Pagotto, a quem eu e o colega Vasco Antônio Crivelaro pudemos acompanhar nas atividades cirúrgicas por vários meses (Figuras 31 a 34) .
Nos últimos oito meses do internato acontecia uma despedida da turma quase que mensal (Figuras 35 a 37). Era comum recordar, de cada aluno, alguns fatos que o caracterizavam, ou que o tivessem caricaturado.
A nossa turma era muito unida. Foi eleito como nosso orador José Vicente Novais Félix, representante de classe e que morava junto comigo, na mesma república. Receberam homenagens os seguintes professores: Álvaro da Cunha Bastos (Figura 38), titular de ginecologia e posteriormente diretor da faculdade; Clemente Isnard Ribeiro de Almeida (Figura 39), titular de otorrinolaringologia; Dino Baptista Germano Pattoli (Figura 40), titular de parasitologia; Douglas Zago (Figura 41), assistente de histologia e responsável pela disciplina de embriologia; Fernando Varela de Carvalho (Figura 42), titular de farmacologia; José Carlos Figueiredo Brito (Figura 43), assistente de neurocirurgia; José Hugo Lins Pessoa (Figura 44), assistente de pediatria; Jorge Martinho (Figura 45), nefrologista e assistente de clínica médica; Lauro Takumi Kawabe (Figura 46), assistente de cirurgia; Lenir Mathias (Figura 47), titular de obstetrícia; Marco Antônio Paes de Freitas (Figura 48), assistente de clínica médica; Miguel Nassif (Figura 49), cardiologista e assistente de fisiologia; Paulo David Branco (Figura 50), titular de cirurgia, e Roberto Marcio da Costa Florin (Figura 51), infectologista. Receberam homenagens administrativas Benedito Antônio Silvério (Figura 52) e Percival Camilo Souza (Figura 53), que colaboravam no biotério e nas aulas práticas laboratoriais que envolviam animais.
O patrono da turma foi Metry Bacila (Figura 54), titular de bioquímica; o paraninfo foi Adhemar Purchio (Figura 55), assistente de microbiologia e imunologia; e o diretor era Aníbal Cipriano de Silveira Santos (Figura 56), titular de psiquiatria e de psicologia médica, que recebeu uma homenagem especial.
A quinta turma da Faculdade de Medicina de Jundiaí graduou-se aos 7 de dezembro de 1978, no Centro de Convenções do Anhembi (Figuras 57 a 59). Foi a primeira turma a realizar a galeria fotográfica de seus alunos e a filmar o evento, naquela ocasião, em Super 8, pois não havia vídeo.
A solenidade foi marcante. Reinava um profundo sentimento de emoção e gratidão. Imperava silêncio e reflexão entre os doutorandos, diferentemente da algazarra que se verifica no picadeiro das solenidades universitárias de hoje em dia.
Aquele foi um dia singular. A epopeia iniciada com a passagem pelo vestibular em 1973 estava se concluindo. Estávamos recebendo o título de médico. Muitos dos colegas nunca mais os veríamos. Era a consagração com os louros da vitória em pleno pódio, mas também um sentimento de adeus ou um seco ponto final, que nem o baile de formatura realizado em Jundiaí, dias após a colação de grau, pôde atenuar.
Ao fechar os álbuns de fotografias, contemplava emocionado meu filho, que decidira trilhar os mesmos passos que eu havia iniciado há quase seis lustros. O percurso fora sinuoso, difícil e espinhoso, mas também alegre, gratificante e compensador.
No íntimo, agradeci a Deus pela epopeia que vivi e pelo meu filho ter se atrevido a revivê-la. Tudo tinha valido muitíssimo a pena! (Figuras 60 e 61).
1) Texto escrito cerca de 30 anos após meu ingresso na Faculdade de Medicina de Jundiaí, ocorrido em 1973.
2) A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) foi fundada em 1912 por Arnaldo Augusto Vieira de Carvalho, com o nome de Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Em 1925 teve seu nome alterado para Faculdade de Medicina de São Paulo, e, em 1934, foi incorporada à recém-criada Universidade de São Paulo, passando a ter a atual designação.
3) Sesi: Serviço Social da Indústria.