Conseguir entrar na faculdade de medicina foi um grande sonho que acalentei desde tenra idade e que Deus favoravelmente me concedeu. Contudo, o caminho foi muitíssimo longo e, por mais que alguém se dedique de corpo e alma ao estudo durante o período de formação universitária, ainda haverá muito que aprender.
Nesse contexto, são inapagáveis em minha memória as palavras que o saudoso, querido e inesquecível professor de anatomia, Olavo Marcondes Calazans, dirigia no primeiro ano letivo aos seus alunos em forma de conselho e de alerta: “Vocês terão seis anos para se formar e outros seis para se conformar”, intuindo-nos que a busca do aprendizado e da formação profissional não se extinguiria tão somente na graduação, mas se estenderia para sempre.
Tenho plena certeza de que durante o curso médico procurei participar e estudar com afinco todas as disciplinas curriculares e algumas extracurriculares, independentemente de possuir maior ou menor aptidão. Almejando ter a melhor e a mais completa formação possível, deixei para decidir que especialidade escolheria somente durante o período de internato2.
Não restavam dúvidas de que era necessário e praticamente obrigatório continuar o tirocínio profissional após a graduação, através de um bom programa de residência médica3.
Para tal, deveria enfrentar outro vestibular – igual ou pior que o primeiro! –, visto que a concorrência era entre graduandos de medicina; o número de vagas para residência era proporcionalmente menor, e pelo menos a metade dos alunos não conseguiria aprovação; ademais era nítido o favorecimento dado aos alunos nos locais de residência que tinham faculdade de medicina, infelizmente, condições essas que persistem até hoje em dia!
Assim só restavam duas saídas: estudar muitíssimo e prestar o concurso em diversos locais onde fosse possível. Eu, que tinha fé, fui felizardo, pois encontrei mais uma saída: rogar reiteradamente a Deus, a fim de que, assim como me deu a incomensurável felicidade de ingressar numa faculdade de medicina, me desse a alegria de ingressar num bom serviço de residência médica. E assim eu fiz. Persegui meticulosamente esses três quesitos com o vigor da juventude que tinha; e, no âmbito da fé, além de minhas orações, decidi fazer um sacrifício nessa mesma intenção: passaria todo o período de internato – 1,5 ano final do curso médico – sem fazer minha barba. Essa atitude poderia ser interpretada como uma espécie de “promessa”, mas na verdade não era, pois os “pagadores de promessas” cumprem o que se comprometeram somente após conseguirem o que pediram a Deus. Em meu caso não! Fiz um sacrifício físico, uma espécie de oração, a fim de reforçar meu pedido nas orações convencionais de ingressar numa boa residência, sem saber se seria contemplado. Havia me comprometido que cortaria a barba poucos dias antes da data da colação de grau.
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No internato tive a oportunidade de ser também monitor da disciplina de urologia, condição de destaque que já havia galgado por duas vezes durante o curso médico, nas disciplinas de fisiologia (durante dois anos) e de clínica médica (durante um ano e meio) e, em decorrência, acabei optando por me especializar em urologia, pois, além de ser uma especialidade clínico-cirúrgica; tratar de crianças, adultos e idosos; de homens e de mulheres; ter boa resolubilidade; ser objetiva e intuitiva ao mesmo tempo, tive a oportunidade de contar com um excepcional assistente – Cláudio José Pagotto –, que muito auxiliou, ensinou e estimulou não somente a mim, mas também ao meu colega de turma Vasco Antonio Crivelaro, que também foi monitor de urologia juntamente comigo e igualmente decidiu pela mesma especialidade (Figuras 2 a 7).
Concursos
Lembro-me de que realizei exames em diversos hospitais para não perder a oportunidade de ingressar numa boa residência. A maioria foi para a especialidade de urologia, mas também prestei um concurso para clínica médica, na Unicamp – Universidade Estadual de Campinas. Obtive boas classificações e fui aprovado em vários deles. Acabei optando pelo Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual.
Residência em urologia
Foi uma alegria inaudita poder ingressar como residente no afamado Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual. Contudo, logo após a divulgação do meu ingresso, tive de solicitar adiamento por um ano, visto que havia sido convocado, pouco antes de meu casamento, para prestar o serviço militar como médico, no estado do Mato Grosso do Sul. Após angustiantes dificuldades narradas em outra crônica4, consegui, com muito sacrifício, me casar em São Paulo, como havia almejado, e rumar para Campo Grande, tendo, nessa viagem não planejada, a minha inusitada lua de mel.
Casamos no dia 24 de janeiro de 1979, numa quarta-feira, e chegamos – eu e minha esposa – a Campo Grande, numa sexta-feira, onde passamos o final de semana. Na segunda-feira seguinte, na apresentação ao comandante da unidade, recebi a inesperada notícia de que o quadro de médicos estava completo, e que se eu quisesse retornar, poderia fazê-lo.
Eu e minha esposa estávamos preparados para ficar um ano longe de nossos familiares e rotinas. Contudo, não sabíamos qual o paradeiro que estaria sendo reservado para nós dois, nesse estado, depois do treinamento militar de 45 dias, a que eu obrigatoriamente iria me submeter. Após confabularmos e pesarmos os prós e contras decidimos regressar.
Lembro-me de que uma das primeiras medidas que tomei foi telefonar para o Hospital do Servidor Público Estadual e verificar como estava minha vaga. Informado de que ainda não havia sido chamado meu substituto imediato para preenchê-la, pedi que não o fizessem, pois havia sido liberado do serviço militar no Mato Grosso do Sul e estaria em São Paulo antes do início de minhas atividades como residente, em fevereiro de 1979.
Foi uma grata felicidade, pois não atrasaria em um ano a minha especialização. À época, prestava-se concurso diretamente para a especialidade almejada. Como residente de urologia deveria cumprir um ano em cirurgia geral, estagiando em várias áreas como: cirurgia vascular, pronto-socorro, cirurgia pediátrica, cirurgia geral, urologia, cirurgia plástica, anestesia e unidade de terapia intensiva. O segundo e terceiro anos eram exclusivamente dedicados à urologia. Meu primeiro ano de residente foi em 1979 e, à época, havia tão somente duas vagas (Figura 8). Tive a grata felicidade de ter como companheiro de residência, na mesma especialidade, o colega Limírio Leal da Fonseca Filho1, que, além de muito educado, alegre, simples, fraterno, pacífico e agregador, era possuidor de uma boa formação médica e muita habilidade como cirurgião. Nossa amizade tem perdurado desde essa época!
O Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual proporcionou-me não somente uma sólida formação teórico-prática sobre minha especialidade, como também me deu estímulo e condições necessárias para desenvolver trabalhos científicos, que foram encaminhados para publicação em revistas médicas ou da especialidade, como também apresentados em congressos, feitos que me facultaram um diferenciado destaque curricular.
Conclui meus três anos de residência em fevereiro de 1982. Sempre nutri desejo de manter e aprimorar meus conhecimentos e, se possível, atuar como docente numa faculdade de medicina ou num hospital-escola. Nesse ano houve concurso para assistente do Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual. Havia três vagas a serem ocupadas e eu fiquei em quarto colocado, não sendo chamado. Entretanto, novo exame ocorreu quatro anos depois, em 1986. Dessa vez tinham sido disponibilizadas quatro vagas, ocasião em que também concorri e tive o privilégio de ser aprovado em primeiro lugar.
Outros Reconhecimentos
Contudo, não sou somente grato ao Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual pela oportunidade de ter tido uma boa formação urológica; por me ter aberto, em 1982, as portas de minha pós-graduação, em nível de mestrado, na Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); por ter contribuído em meu currículo, a fim de que eu conquistasse, por concurso, uma bolsa de estudos da Rotary Foundation, na Austrália, em 1986; por me ter concedido a condição de chefe do Departamento de Litíase Urinária e Endourologia em 1990; a condição de
preceptor em 2015; contribuição financeira para sustento familiar; o prazer de ensinar, interagir e acompanhar dezenas e dezenas de jovens médicos em processo de aprendizado e de especialização, seguindo caminhos que, com idealismo, sacrifícios, perseverança e muita alegria outrora também percorri; mas também por me ter concedido a honra de conviver e ombrear com destacados profissionais da capital, do estado de São Paulo e do Brasil.
Todavia sou também excessivamente grato ao Hospital do Servidor Público Estadual, essa querida e tradicional instituição de ensino, por me ter concedido o privilégio de que meus dois primeiros filhos nela nascessem, numa época em que eu tinha parcos recursos financeiros e não dispunha de plano de saúde. Meu primeiro filho, Enrico, nasceu em 21 de outubro de 1980, enquanto eu era residente no segundo ano. Meu segundo filho, Bruno, nasceu em 4 de outubro de 1982, quando eu tinha deixado a residência havia oito meses e, portanto, nenhum vínculo, a não ser o afetivo, mantinha com o hospital e seus profissionais.
Contudo, sou também imensamente agradecido ao Hospital do Servidor Público Estadual e aos médicos que cuidaram de meu filho Enrico. Ele, que sofreu em 1987 – um ano após meu ingresso como assistente do Serviço de Urologia – um grave acidente e foi submetido não somente a um longo, múltiplo e angustiante procedimento cirúrgico, mas, igualmente, a uma morosa recuperação pós-operatória1; assim como também pelo fornecimento gratuito, durante alguns anos, de medicações de alto custo ao meu estimado pai, então, dependente meu, nessa entidade.
Não há dúvida nenhuma de que minha história profissional e pessoal esteve, está e sempre estará entranhada indelevelmente ao Hospital do Servidor Público Estadual (Figuras 9 a 12) – Feliz, agradecida e honrosamente!
1 Concluído em setembro de 2016.
2 O internato é o período final da formação médica, onde o aprendizado é mais prático do que teórico e é feito em ambulatórios, centro cirúrgico, enfermarias, unidade de terapia intensiva e pronto-socorro, além de discussões de casos e reuniões anatomoclínicas. Hoje em dia ele dura de um ano e meio a dois anos.
3 A residência médica é o período de especialização profissional e, necessariamente, se dá para quem já é graduado. Hoje em dia, na dependência da especialidade, varia de dois a cinco anos.
4 Essa outra crônica intitula-se “Eu Militar”, e encontra-se neste livro.
5 Esse triste episódio é narrado em minha crônica “Um Anjinho que Veio do Céu”, que também se encontra neste livro.
6 Limírio Leal da Fonseca Filho tornou-se diretor do Serviço de Urologia do Hospital do Servidor Público Estadual, em janeiro de 2010.