Há fatores e experiências na vida que são indeléveis na memória, sobretudo se tiverem sido participados intensamente. Não importa se despertam sentimentos positivos ou negativos, o que vale é o quanto eles influenciaram ou interferiram no transcurso da existência.
Dentre as mais significativas experiências que tive foi a de ter estudado no Ginásio Santa Gema, das Irmãs Passionistas. Na época, denominava-se Educandário; depois Ginásio; e, atualmente, Colégio. Dispunha de curso primário (1a à 4a série) e ginásio (5a à 8a série), hoje englobadas como ensino do primeiro grau. A maior parte dos alunos era externa, mas havia também alunas internas, pois, moravam em suas dependências.
A Congregação das Irmãs Passionistas de São Paulo da Cruz foi fundada por uma leiga chamada Maria Madalena Frescobaldi Capponi (1771-1839, Figuras 1 e 2). Um de seus carismas é a meditação da Paixão de Jesus Cristo. Atuam muito na área da educação. Santa Gemma Galgani (1878-1903, Figura 3), padroeira da escola, foi uma religiosa jovem e santa dessa congregação, que teve a graça de ser estigmatizada com as Chagas de Cristo.
Lá fiz minha formação durante oito anos, precisamente de 1962 a 1969, e, só não continuei cursando o então científico, hoje colegial, por sua então inexistência.
No Ginásio Santa Gema pude aprender, nas linhas, um pouco da doutrina; e, nas entrelinhas, as virtudes cristãs. Outrora, quando iniciei, o hábito das religiosas era talar, e até o pescoço não era desnudo. Ao encontrar uma freira dentro ou fora do colégio deveríamos saudar assim: “Louvados sejam Jesus e Maria!”, ao que ela respondia: “Para sempre sejam louvados!”. Podia completar a saudação com um ósculo no dorso da mão da religiosa.
O uniforme dos alunos continha gravata para os meninos e boina para as meninas (Figura 4). Os três primeiros alunos, nas provas mensais, ostentavam como adereços medalhas no lado esquerdo do peito, que correspondiam às suas classificações. Poucas vezes tive esse privilégio. Embora não fosse tão bagunceiro, lembro-me de, quando estava no primeiro ano, ter ficado de castigo num quarto escuro, tal qual uma solitária de prisão. Aquela experiência fatídica foi apavorante para mim. Na época o respeito era algo inquestionável. Todos rezavam no pátio antes de ir para as salas de aula. A cada professor ou diretora que adentrava na sala de aula todos deveríamos ficar prontamente em pé, em absoluto silêncio, até que recebêssemos ordens para nos assentar.
Figura 4 – Encontro-me na escada da antiga casa onde morei, à Rua Manuel Moraes Pontes, com o uniforme do Educandário Santa Gema, por ocasião do curso primário, tendo atrás a minha querida mãe.
Todo aluno era responsável por carregar e cuidar de sua Caderneta Escolar, pequeno livrinho que continha as notas, faltas e eventuais advertências cometidas. Guardo comigo com muito carinho, há mais de meio século, meu caderno de tarefas da segunda série do primário, devidamente encapado e conservado (Figuras 5 e 6).
Apesar da rigidez disciplinar, numa época em que o sexo era tabu e não recebíamos nenhuma informação em casa, foram inesquecíveis as aulas extras de educação sexual que tivemos no ginásio, com o professor de matemática Alvino. Na ocasião eu já tinha pretensão de ser médico, e a biologia muito me fascinava, sobremodo aquela relacionada ao sexo, numa idade em que ele é transpirado intensamente por todos os poros.
Do ponto de vista cultural participei de aulas de educação artística, peças teatrais, canto, jograis e da fanfarra. Meu instrumento era o zabumba e ficava na primeira fileira. Foram inúmeros ensaios e desfiles de que participei, quer no bairro, quer no centro da cidade. O Dia da Pátria – 7 de setembro – era presença obrigatória dos alunos, quer para tocar quer, para desfilar.
Inolvidável também foi a minha experiência com esportes. Tínhamos o professor “Cacau” de educação física. Ele era também tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo e arrumava o Centro Esportivo da Academia de Polícia Militar, no Barro Branco, para treinarmos. Íamos e voltávamos a pé pela Invernada, percurso que durava cerca de uma hora para ir e outra para voltar. Embora gostássemos de jogar futebol de salão, éramos poucos os alunos masculinos, e menor ainda o número daqueles com melhores habilidades. Ao ser inaugurada a quadra de esportes num antigo pomar que fora desativado, perdemos para o Colégio Salete no primeiro e segundo times.
Certa feita, fomos convidados para participar do jogo de abertura do campeonato do Colégio Santa Luzia em Pinheiros, que era da mesma Congregação Passionista. Perdemos por 15 a 0!!! Foi uma humilhação diante de tanta gente. Entretanto, deve-se fazer uma ressalva. Na ocasião, o Santa Luzia só tinha meninas. O time de futebol que o representava não era de seus alunos, mas formado por jogadores mais velhos que frequentavam a instituição. Nesse campeonato jogamos cerca de seis vezes e só conseguimos ganhar a última partida, no finalzinho do jogo, com um gol meu! Foi a nossa glória! Aliás, eu era um dos que não tinha grande ginga para driblar; contudo, era conhecido por possuir, para a idade, uma “bica” potentíssima no pé esquerdo, que quando acertava a direção era quase que indefensável. Os colegas sempre me advertiam: “Helio: Chuta direito com o pé esquerdo!”.
A estrutura física do ginásio também mudou muito. A própria quadra poliesportiva tornou-se, anos depois de minha saída, coberta e com piso de taco. Havia uma gruta dedicada a Nossa Senhora de Lourdes que foi desativada para formar um pátio. Um grande galpão deu lugar ao teatro, e o terreno ao seu lado, que albergava um pequeno parque de diversões, transformou-se em outra quadra de esportes. O pátio à frente do frontispício foi ampliado em detrimento de uma horta que existia à sua direita (Figura 7).
Todas essas transformações foram adquiridas ao longo do tempo e só as pude acompanhar porque mantive minha residência no mesmo bairro e tive o privilégio de ter os meus três filhos estudando em suas dependências.
Essas recordações tornaram-se candentes e comoventes quando tive a grata satisfação de participar, como ex-aluno, no final de 2001, das comemorações dos 60 anos de sua fundação (1941).
Além de encontrar, quarenta anos depois, a irmã Maria Mônica, austera professora do meu segundo ano primário, vi também alunos que o tempo parecia ter apagado de minha memória.
Percorrer suas dependências, que outrora pareciam enormes, e adentrar novamente as salas de aula tinham um sabor especial. Muitas imagens religiosas resistiram às intempéries e estavam conservadas, tal e qual as havia conhecido de calça curta. Sentia a presença dos professores e educadores ao meu lado, embora não mais estivessem ali.
Em cada metro quadrado havia o peso coercivelmente sufocante da saudade e a leveza contagiante da gratidão!