Certa vez, no Rio de Janeiro, um jornalista me perguntou qual era o meu clássico preferido. A resposta foi instantânea: Eneida, de Virgílio. Converso com Virgílio há anos. Se Nélida Piñon confessou que é aprendiz de Homero, eu sou aprendiz de Virgílio. Sempre lendo e relendo suas páginas, apresentando os dramas das personagens para os meus alunos de Literatura Latina, apontando detalhes da tradução, a escolha dos adjetivos, os arranjos das palavras, a precisão e a força das metáforas, dissecando, enfim, o estilo do mago. Virgílio transita pelos planos temporais: passado, presente e futuro encontram-se muitas vezes condensados numa pequena expressão. Quando ele conta, por exemplo, que os troianos carregaram para dentro da cidadela o cavalo de madeira, “a máquina fatal” que penetrara dentro das muralhas, prenhe de armas, já imaginamos as cenas vindouras: o cavalo é máquina mortífera, que provocará a guerra, o infortúnio, a tragédia. A poesia surrealista está acoplada à própria atmosfera mítica do relato: o herói que fica invisível sob um manto mágico, aparições de deuses alados, dragões que saem do mar. Cenas de fugas, incêndios, gestos de amor filial e conjugal, aparições de fantasmas, bosques sagrados, travessias a outros mundos em meio à natureza perigosa, pontes que se erguem a todo instante unindo o natural ao sobrenatural. Como Virgílio é atual e profundo.
Virgílio é amigo da minha alma. Assim como o foi para Dante Alighieri, que nasceu em Florença, em maio de 1265, numa época de grandes amores e grandes ódios, de fé exaltada, de aberrações dolorosas. Quando Dante, na Divina Comédia, resolveu percorrer as paragens espirituais do Inferno, situado, segundo ele, debaixo de Jerusalém; da montanha do Purgatório e dos céus circulares do Paraíso, pediu ajuda a Virgílio para que fosse o seu guia. Não importam os milênios que separaram Dante de Virgílio, nem os que separam esses poetas de mim. Integro-me a eles nessa jornada, pois preciso que eles me habitem para criar poesia, para revelar mistérios, para poetizar o mundo.
Como esquecer aquele momento incrível em que Dante encontrou Virgílio? Dante desceu ao vale silencioso, divisou um vulto e gritou: “Tem pena de mim quem quer que sejas, sombra ou homem verdadeiro.” E Virgílio respondeu que um dia fora homem, que nascera nos tempos de Júlio César, que vivera em Roma na época do bom imperador Augusto, quando ainda se adoravam falsos deuses. Explicou que ele, como poeta, cantara as proezas de Eneias, depois do incêndio de Troia. Dante exclamou aflito: “Oh! És, então, Virgílio, fonte de onde jorra em abundância a vibração poética?” Apiedado do pranto de Dante, Virgílio se propôs a levá-lo ao bom caminho, a ser seu guia pela região do padecer eterno. Dante rogou então, em nome do Deus que Virgílio não conhecera, para que todo mal fosse afastado. E nessa proteção, pôs-se a caminhar com Virgílio. Caminho atrás deles.
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O dramaturgo Paulo Corrêa de Oliveira, primo do grande ator Rubem Corrêa, de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, escreveu e encenou uma peça de teatro intitulada Divina Comédia/MS, em que ele encontrava, qual Dante, no meio da jornada da vida, com o poeta Lobivar Matos, que seria o seu guia, como Virgílio, pelos caminhos da arte desse estado do Brasil Central. Lobivar nasceu em Corumbá, em 1915 e faleceu muito jovem, aos 32 anos de idade. Seus livros, Areotorare, nome do índio profeta, contador de histórias da tribo bororo e Sarobá, bairro pobre da zona portuária, foram marcos da poesia modernista naqueles rincões. Lobivar passeia então pelas páginas da Guerra do Paraguai em Retirada da Laguna, de Visconde de Taunay; pela poesia lúdica e surpreendente de Manoel de Barros; pelo canto agudo dos pássaros nos abismos e na garganta de Tetê Espíndola; pelos quadros de Lídia Baís e Humberto Espíndola; pelos imensos valados do futuro. Eu, Raquel Naveira, ó glória, era uma estrelinha pendurada no Empíreo, perto da Cândida Rosa.
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A narrativa da destruição de Troia, na Eneida, é emocionante. Começa com o estratagema do cavalo de madeira. O jovem grego Simão recebendo a incumbência de convencer os troianos de que o cavalo era um presente dos gregos para compensar o roubo do Paládio de Minerva. Os troianos acreditam, abrem os portões e levam para dentro de Troia o gigantesco cavalo. À noite, os navios voltam, gregos armados saem do interior do cavalo e abrem as portas da cidadela. Os troianos dormiam exaustos, quando os gregos começaram o massacre.
Na noite de 11 de setembro de 2001, quando as Torres Gêmeas vieram abaixo e mudaram a história da humanidade, estava eu, mais uma vez, lendo a Eneida com meus alunos: astúcia, vingança, chamas, Troia destruída de alto a baixo, desgraças, ruídos, choros, retinir de armas, reunir de tropas, combates, carnificina, furor, ira, flagelos, lamentações, provocações, cadáveres, sangue por toda parte. E os que morrem, os que pensam em morrer bravamente, com armas nas mãos. À medida que íamos lendo o texto e lembrando-nos do que acontecera naquele fatídico dia, desceu um silêncio sobre a sala, uma reverência de chumbo. Percebemos uma presença que ficou pairando, algo ao mesmo tempo claro e turbado. Muitos choraram.
Troia destruída,
Incendiada,
Ardendo em chamas;
O cavalo de madeira,
Presente dos gregos,
Vomitou guerreiros
Na noite escura;
Casas,
Torres,
Templos
Desmoronaram de alto a baixo;
Por toda parte,
Lamento,
Tumulto,
Clamor que se eleva até os astros.
Quem terá destruído Troia?
Do mar veio o dragão,
Corpo de escamas,
Olhos ardentes,
Boca sibilante,
Enrolou-se em torno do sacerdote
E despedaçou seus membros
A dentadas.
Quem terá destruído Troia?
O desenfreado deus Marte?
A coragem de Ulisses?
As perfídias do traidor?
Quem terá destruído Troia?
As artimanhas?
As máquinas fatais?
Os insultos do inimigo?
Quem terá destruído Troia
E trazido tantos flagelos,
Tanto furor e ira
Que nesse transe supremo
Já não encontramos lágrimas para nossas provações?
Quem terá destruído Troia?
Provocado essa carnificina,
A vida se esvaindo em sangue
A cada esquina?
Quem terá destruído Troia?
Quem, por tais crimes,
Por tamanha audácia,
Merece o inferno
E o roer dos vermes?
Quem terá destruído Troia?
Troia, que tantas vezes ressurge das cinzas,
Das ruínas,
Das escavações em nossa memória?
Quem destruiu
Continua
Ateando fogo nas muralhas.
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Aquela outra passagem em que Laocoonte, sacerdote de Netuno, suplica aos troianos para não introduzirem na cidade o cavalo suspeito, mas é estrangulado por duas serpentes monstruosas vindas do mar, também é impactante. Mostra que não cremos nos profetas, que não queremos ouvi-los quando dizem a verdade.
A história de Laocoonte,
Eu me horrorizo contando:
Laocoonte,
Sacerdote de Netuno em Troia,
Opôs-se à entrada do cavalo de madeira:
“É a morte,
A destruição,
A mão do gatuno,
Este é o momento oportuno
De acabar com o inimigo,
Reúno o povo,
Atiro um dardo contra essa estátua de carvalho
E puno os heróis gregos.
Eu me horrorizo contando
A história de Laocoonte,
Ninguém ouviu o sacerdote,
A flecha produziu um som oco na barriga do cavalo,
Armas tilintaram,
Houve sinal de fogo no horizonte,
Enquanto a máquina penetrava
Pela ponte da cidade.
Não termina aqui
A história de Laocoonte,
Contando,
Horrorizo-me:
O sacerdote imolava um touro
Diante do altar,
Quando serpentes vindas do mar,
Emparelhadas,
Avançaram pela praia
Com suas cristas sangrentas,
Seus olhos ardentes,
Suas línguas vibrantes
E a dentadas
Despedaçaram
Laocoonte e seus dois filhos.
Que horror!
Fugi,
Pálido de susto
Por uma rua escura,
Morto Laocoonte,
O prudente sacerdote,
Pensava;
De longe
Vi meninos puxando o cabo
E moças enfeitando com flores
O monstro sinistro,
Enquanto se acendiam os primeiros astros
E os derradeiros archotes.
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O amor e morte da rainha Dido fazem refletir sobre o relacionamento homem-mulher e sobre as qualidades e atributos do amor. O coração da rainha Dido oscilava entre o juramento de fidelidade ao seu falecido marido Siqueu e o novo amor por Eneias, que lhe ardia no peito. A irmã Ana encoraja sua paixão e a deusa Juno, do alto, propõe a Vênus o casamento entre os dois protegidos. Um temporal, durante uma caçada, obriga Eneias e Dido a se refugiarem numa gruta, onde se dá a primeira relação amorosa. A notícia se espalha pelo país. Um rei da Líbia, Jarbas, pretendente de Dido, sente-se humilhado e suplica a vingança de Júpiter. Este envia Mercúrio a Eneias para lembrar ao herói troiano que sua missão é fundar nova pátria na Itália. Eneias, obediente, prepara os navios secretamente e abandona Cartago, insensível ao sofrimento de Dido. A rainha sobe numa pira, perpassa o próprio peito com a espada de Eneias, fazendo imprecações contra a ingratidão do herói, jurando ódio eterno e profetizando guerras.
Diante desse amor furioso transformado subitamente em ódio, costumava perguntar aos meus jovens alunos: houve amor verdadeiro entre Dido e Eneias? Depois de ouvi-los, lia com eles I Coríntios 13, onde a Palavra explica que o amor é paciente; bondoso; não é invejoso; nem orgulhoso; nem escandaloso, ao contrário, é discreto; não é interesseiro; não se irrita; não guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mas se compraz com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Nada como a Palavra para dar um norte às nossas vidas, para percebermos claramente que entre Dido e Eneias houve apenas paixão, dor e equívoco. Que o amor é ideal elevado e difícil, que brilha como uma estrela.
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E por falar em amor, vem-me sempre à memória o encontro de Eneias com seu velho pai Anquises, no meio das chamas. Anquises recusava-se a seguir o filho na fuga, dizia que seria um fardo, que ele o deixasse para trás. Eneias espanta-se. Jamais abandonaria seu pai ancião, nem seu filho menino, o pequeno Iulo, seu passado e seu futuro. Ouvindo o crepitar do fogo, contesta: “Vamos, pois, querido pai, coloca-te sobre minha cerviz, levar-te-ei em meus ombros e esta carga não me será pesada. Seja o que for que suceder, nosso perigo será comum e nossa salvação uma só.” Curva-se e toma o pai sobre os seus ombros largos cobertos com a pele fulva de um leão e estende a outra mão para o seu filho. Choro ao lembrar-me dessa cena. Honra a quem tem honra. A responsabilidade do amor.
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Sou mesmo apaixonada aprendiz de Virgílio. Imagino-o como uma das mais belas criaturas do mundo. Nele há de tudo: a sabedoria oriental, o logus grego, a civilização romana. Imbuído da cultura grega, conhecedor profundo da Ilíada e da Odisseia de Homero, Virgílio patenteia a influência de ambos os poemas, criando uma vasta epopeia patriótica destinada a legitimar pela evocação de suas origens ilustres, as altas aspirações de Roma. A Eneida, porém, é original, tomou um rumo diferente dos poemas homéricos. Tem outra visão de mundo. Em confronto com a avidez dos generais gregos que vão à Troia visando riquezas e buscando fortuna, Eneias é um herói pacífico, humanitário, piedoso, pio, no sentido ético dessa palavra. Ele participa de uma guerra de defesa. Não o motiva a ambição, apenas cumpre a vontade divina de fundar na Itália uma nova Troia. Sacrifica-se para cumprir uma missão de interesse coletivo. Também eu não desconheço os infortúnios. Esforço-me por socorrer os infelizes, por salvar os meus. Sou aprendiz de Virgílio.
(Do livro Quarto de Artista, Rio de Janeiro: Íbis Libris, 20013)