O meu relacionamento com os militares daria para fazer uma pequena novela.
Como sói acontecer com todos os varões que estão para completar 18 anos, participei do processo de alistamento militar no quadro do Exército Brasileiro. Madrugadas na fila, gozações de soldados em exercício, ameaças de cabos e sargentos e desdém por parte de oficiais eram rotinas esperadas nesse processo.
Felizmente, nessa ocasião, fui dispensado por excesso de contingente. Participei, felicíssimo e com orgulho, da cerimônia e Juramento à Bandeira ocorrida no Estádio Municipal do Pacaembu, o tradicional Paulo Machado de Carvalho.
Entretanto, novamente cruzei com os desígnios do Exército Brasileiro por ocasião do término do curso de medicina, em 1978, quando a minha faculdade, desafortunadamente, foi uma das sorteadas e seus varões, como consequência, obrigados a servir as Forças Armadas durante um ano.
Tínhamos de servir no Mato Grosso do Sul, pois naquela época esse estado pertencia à mesma região militar de São Paulo. Após treinamento em Campo Grande seríamos designados, de acordo com a classificação de cada um, para cidades interioranas e fronteiriças, como, por exemplo, Porto Murtinho, cujo acesso só era possível por ar ou rios.
Esse não era o maior problema, mais sim o fato de estar com casamento marcado há meses para o dia 24 de janeiro de 1979. Assim, a cerimônia já estava acertada com o querido padre Bruno Carra da Igreja de São Pedro Apostolo, além do cantor, instrumentistas, floricultura e Clube Macabi, onde seria a recepção. Já tinham sido entregues quase todos os convites.
Deveria me apresentar em Campo Grande três dias antes do meu casamento. O coronel responsável pelo processo estava irredutível, não admitindo minha ausência, sob pena de ser preso.
Com muito custo e graças à ação divina, consegui casar, com a proposta de partir no dia seguinte para Mato Grosso do Sul.
Nessa ocasião, havia conseguido entrar na residência médica em urologia, no concorrido Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo. Tive de pedir adiamento do meu programa por um ano, o que foi concedido.
Desmontamos o apartamento já organizado e não inaugurado, e estávamos convictos de que teríamos de trocar, às pressas, nossa lua de mel, anteriormente almejada nalguma praia do nordeste, para o desconhecido oeste brasileiro.
A homilia da cerimônia religiosa e a comemoração social foram marcantes e emocionantes, pois estávamos de mudança para terras desconhecidas e lá permaneceríamos por pelo menos um ano.
Passamos a primeira noite no Hotel Hilton e seguimos rumo a Campo Grande, com pernoite em Assis e Presidente Epitácio. Nesta cidade dormimos, sem querer, num hotel de meretrício. Foi uma experiência inesquecivelmente repugnante no início do casamento e não combinava com nossos ideais. Para mim, que tinha morado em república de estudantes durante seis anos, era facilmente absorvível, mas não para minha recém-esposa, que jamais se desgarrara de sua bela casa e unida família.
Chegamos a Campo Grande no sábado e já nos mobilizamos para alugar alguma quitinete, pois não dava para morar no hotel devido ao elevado custo.
Encontramos, no domingo, meu colega de turma, o Ariovaldo, que se encontrava aflito e desesperançado, Estava em prantos, junto com seu pai, pois também jamais tinha morado fora de casa. Apesar de sua idade, não se conformava com essa ideia de serviço militar no Mato Grosso do Sul.
Na segunda-feira seguinte apresentei-me ao comandante da unidade militar e este, para minha surpresa, disse-me que o quadro de aspirantes estava completo. Caso quisesse, poderia desistir, com a condição de servir após o término da residência.
Essa foi outra surpresa. Naquela altura tudo já estava direcionado para morar no Mato Grosso do Sul durante um ano: apartamento em São Paulo desmontado; prorrogação da residência médica; familiares e amigos conscientes; cancelamento de plantões, adiamento da faculdade de engenharia da Aida, minha esposa... enfim, já tínhamos nos acostumado com a ideia de que morar um ano fora seria uma experiência muito boa para a nossa vida a dois.
Entretanto, após confabularmos, prevaleceu o desejo de voltar. Felizmente, por telefone, consegui retornar ao meu lugar na residência médica e partimos no dia seguinte, numa terça-feira.
Apesar das retas intermináveis da estrada, pegamos um temporal intenso e deslizamos na pista, batendo parte do carro na lateral da rodovia. Felizmente o mal não foi pior. Era um carro Brasília, excessivamente carregado pela mudança.
Paramos em Presidente Prudente para reparos. Afortunadamente tínhamos o endereço do irmão do Sr. Perez, vizinho, amigo dos pais da Aida, e, sem nos conhecer, ele e sua esposa foram excessivamente gentis, pois, além de nos orientar quanto a um mecânico de confiança, nos proporcionaram alimentação e pernoite. Eles foram bons amigos que carinhosamente nos socorreram e jamais serão esquecidos.
No dia seguinte partimos para São Paulo, pernoitando na cidade de Ourinhos. Tanto na ida quanto na volta fizemos a viagem fracionada, pois, além de o percurso ser muito longo, tínhamos a intenção de conhecer as cidades e paisagens que se iam apresentando, com belos rios e represas.
Finda a lua de mel que durou cerca de oito dias, nossa vida voltou ao esperado. A Aida continuou seu curso de engenharia e eu iniciei a residência médica.
* * *
Três anos após concluía minha especialização em urologia. Era fevereiro de 1982. Já tínhamos o Enrico, nosso primeiro filho, com 1 ano e 4 meses, e estávamos no início de gravidez do segundo filho, o Bruno. Ambos nasceram no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, com imensas e gratificantes recordações para mim.
Mas ainda minha experiência militar estaria por vir. Devido ao bom salário, às poucas opções empregatícias e à minha pendência com as Forças Armadas, decidi me alistar como médico no Exército.
Naquele ano, a maior parte dos convocados era composta de médicos com três ou quatro anos de especialização, e eu estava entre eles.
Fizemos um treinamento militar de 45 dias no tradicional CPOR – Centro Preparatório de Oficiais de Reserva, na rua Dr. Alfredo Pujol, em Santana, onde aprendemos as normas e disciplinas militares. Lembro-me, certa vez, que perdi o horário. Saí em disparada ao quartel. No trajeto bati o carro e nem parei para ver o que tinha acontecido, tamanho era o medo de ser repreendido ou de ficar preso...
Aprendi a marchar, fazer continência, conhecer nomes, siglas, regras e conceitos militares. As lições ensinadas eram permeadas pelo impecável jeito de se vestir e recheadas de rigorosa disciplina.
Uma das recordações que trago dessa época era quando, logo pela manhã, o tenente perguntava quem iria almoçar no quartel, pois a comida seria feita sob medida e não se admitia desperdício. Quem desse o nome deveria comer obrigatoriamente, mesmo que posteriormente decidisse em contrário. E quem não desse o nome não comeria.
Uma experiência inesquecível foi ao término do curso, quando fizemos um acampamento militar, que seria a conclusão prática do aprendizado.
Num final de semana estivemos num campo de treinamento onde havia muito mato. Caminhamos fardados por quilômetros; sentimos a ação do gás lacrimogêneo; aprendemos lições de camuflagem; demos tiros com fuzil e vimos o poder da explosão de granadas. Um estilhaço de uma delas, que se desintegrara a dezenas de metros de distância, atingiu, acidentalmente, o olho de um colega da turma, lesando-o e afastando-o definitivamente do grupo.
À noite, embaixo de forte chuva, colocaram-nos no meio do mato e tínhamos de sair guiados apenas com lanternas e cálculos de azimutes2. Não havia banho. A farda suja e molhada amoldava ao corpo. Lembro-me que nem havia lugar para dormir dentro das barracas ou caçambas. A solução que encontrei foi ficar deitado embaixo do caminhão e em cima da grama molhada, pois ao menos estava um pouco mais protegido da chuva que não parava (Figuras 1 a 22).
Cumpri o treinamento militar e, como tinha residência médica, fui convocado para trabalhar no Hospital Geral do Exército, localizado no bairro do Cambuci. Naquela ocasião, o hospital era ainda formado de velhos pavilhões da época da II Grande Guerra Mundial; só no segundo semestre daquele ano (1982) seria inaugurado o prédio novo dos ambulatórios.
Meu turno de trabalho era das 7 às 13 horas e, em alguns dias, das 13 às 19 horas. Almoçava no hospital e depois trabalhava noutros lugares. Tinha plantões aos sábados e domingos a cada seis semanas aproximadamente.
Além dos militares e alguns familiares, atendíamos os ex-combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Suas indeléveis experiências e o sentimento de irmandade que nutriam entre si eram emocionantes e inesquecíveis.
Durante esse ano pude também desenvolver muito a parte escrita da tese de mestrado que estava, paralelamente, realizando na Escola Paulista de Medicina, hoje, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A minha experiência militar proporcionou-me maior amadurecimento como cidadão e conhecimento de realidades inimagináveis. Ela foi tão ampla e rica que daria para escrever um livro!
* * *
Adendo
Embora a ênfase desta crônica seja a minha experiência como militar, não posso deixar de enfatizar que, em consequência de minha inesperada convocação pelo Exército ao estado de Mato Grosso do Sul, minha lua de mel foi uma viagem não sonhada em direção a Campo Grande.
Na estadia nessa bela e aprazível cidade, comprei uma bonita escultura, entalhada em madeira, da imagem de Jesus Cristo carregando a cruz (Figura 23). Em seu reverso, assim dediquei à Aida, minha esposa:
A você querida, uma recordação da nossa turbulenta,
inesperada, corrida, simples, cansada, mas amada,
curtida e inesquecível lua de mel.
Do seu Helio, 29 de janeiro de 1979.
1 Dezembro de 2003.
Anais da V Jornada Nacional da Sobrames, X Jornada Médico-Literária Paulista e VI Sobramíada. Páginas 33 a 35 – São Paulo, 17 a 19 de setembro de 2009.
2 Azimute: ângulo medido no plano horizontal entre o meridiano do lugar do observador e o plano vertical que contém o ponto observado.