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  • Fonte: Crédito: Carlos Ferrara Júnior(1) - Daniel Novaes(2)

“O que temos pertence aos pobres, e só quando damos isto a eles, torna-se nosso.” (São Camilo)

Introdução

Neste capítulo, temos o objetivo de mobilizar considerações que contribuam para se pensar na interface entre Educação, Saúde, Cuidado Paliativos e Bioética (a vida humana atravessada pelas criaçõescarlos ferrara cadeira 31 culturais – valores e normas). Nos rastros deste mote, compreendemos que é por meio da educação que, ao homem, se é ensinada a humanidade e, na esfera sensível, cuidado. Nesse campo, a linguagem tipicamente humana possibilita que se criem as possibilidades de imersão, do homem, no mundo social e cultural, e é nesse lugar que as interfaces entre as diferentes áreas do conhecimento se constroem. Ademais, os discursos que constituem as pessoas e as condições de vida nem sempre precisam ser fatalistas e caminhar pelo solo da negação da vida, é um viver enquanto houver vida, é cuidar e ser cuidado.

Esse cuidar destinado ao outro, especificamente em casos particulares no qual a vida está fragilizada, é chamado de cuidado paliativo.

De acordo com o Ministério da Saúde3, os cuidados paliativos “[...] são os cuidados de saúde ativos e integrais prestados à pessoa com doença grave, progressiva e que ameaça a continuidade de sua vida” e têm por finalidade a promoção da qualidade de vida da pessoa acometida de alguma doença e de seus familiares “[...] através da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce de situações possíveis de serem tratadas, da avaliação cuidadosa e minuciosa e do tratamento da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”4. Tais cuidados devem ser iniciados o quanto antes e sempre que possível, podendo acontecer de maneira precoce e associados a algum tratamento, à medida que a doença avança e na fase terminal. Os cuidados paliativos são necessários e “[...] À medida que a doença avança, mesmo em vigência do tratamento com intenção curativa, a abordagem paliativa deve ser ampliada visando também cuidar dos aspectos psicológicos, sociais e espirituais”5.

Visando às interfaces entre Educação, Saúde, Cuidados Paliativos e Bioética (a vida humana atravessada pelas criações culturais – valores e normas) que propomos neste capítulo, a partir de nosso entendimento do que são os cuidados paliativos, dividimos o texto em Interfaces: Educação e Saúde, que traz contribuições dessas duas grandes áreas para, a partir da reflexão da constituição humana atravessada pela linguagem, formar-se o humano com vistas a uma humanidade sensível a doar-se e a cuidar do outro; no subtítulo Educação como um modo de conscientização, vamos ao encontro do educador Paulo Freire e de outros que com ele dialogam, buscando os indícios de como é necessária a conscientização pelo sujeito do lugar que ocupa, partindo sempre do seu lugar de fala; em Educação e Saúde: interface via cuidado, é trazido o papel do cuidado nos espaços em que acontecem a educação, perpassada pelo olhar da saúde, são as convergências possíveis; adiante, e caminhando para as considerações finais, trazemos o conceito de Bioética, da Dignidade da Pessoa Humana, bem como a Vulnerabilidade e a Alteridade, para refletirmos acerca do cuidado que se tem com a vida e sua finitude.

A seguir vamos ao encontro de Vigotsky e de seus interlocutores buscando compreender, a princípio, como ocorre sua constituição na/pela linguagem.

1 -  A constituição humana: linguagem

Mas os discursos e representações são elementos que nos procedem, o que significa sempre nossa presença por engate e articulação, entre a imposição, adesão ou ruptura (LIESENBERG, 2019, p. 273).

Os discursos nos atravessam e nos constituem. A palavra que cria, recria, dá sentidos e significados às ações do homem, toma da linguagem, signo humano por excelência, o poder de dizer para o outro, por meio de gestos, jeitos e gostos, quem somos, ou melhor, quem estamos. Esse entender da linguagem e da palavra como sendo constituidora do homem tem como ponto de partida a perspectiva do psicólogo russo Lev Semionovitch Vigotsky. Tal perspectiva afirma que o homem se constitui pela palavra do outro6 e seu desenvolvimento, dentro da espécie humana é um processo, não linear, atravessado por idas e vindas e, variando de pessoa para pessoa, tem na história de vida os indícios e as pistas de como as pessoas vão, no curso de suas vidas, constituindo-se.
O discurso, ou melhor, a voz que o enuncia não poderia o ser sem precedentes. O inédito que se busca nos enunciados é um caminho confuso, por não levar em consideração que o dito envolve como numa espécie de rede de significados e sentidos das palavras o não dito. Nesse sentido, Foucault7 menciona que não há um começo para o discurso, mas isso não o isenta de início – ao iniciar o discurso, adentramos um lugar contextualizado em que reverberam o enunciado e os modos como se constituem as situações. Logo, se estabelecem relações entre discurso e poder no qual os silenciamentos podem aclamar seu enunciador afogado em sentimentos e desejos ora intra, ora intersubjetivo, buscando-se, uma verdade em sua redundância, fidedigna.

O valor que se tem da verdade - e a louca busca por ela, a irredutível verdade - assombra aqueles homens que se apropriam do poder e comandam. Se verdade for, então, relação entre discurso e poder, a verdade que se prostra em ilhas nada mais é do que verdades - entende-se, portanto, a busca pela verdade, uma loucura, pois do ponto de vista histórico ela é contextualizada, datada e situada: [...] face às interpretações sem margens nas quais o intérprete se coloca como um ponto absoluto, sem outro nem rela, trata-se aí, para mim, de uma questão de ética e política [...]”8, o valor da verdade é, a responsabilidade.

Por exemplo, o livro O discurso de Pêcheux9 inicia com a charge do velho e a metáfora da ferramenta, em seguida, retoma a expressão On a gagné (Ganhamos). O entendimento do enunciado da ferramenta, do velho e da expressão está no sentido de: quem ganha, não ganha nada e ganha tudo. O enunciado pode ser uma metáfora de um governar para si. Nas ideias de Pêcheux, o discurso é material, as propriedades discursivas são materiais. Em suas análises, do discurso, não poderia ser menos dialético. Por isso afirma: “[...] a materialidade discursiva desse enunciado coletivo é absolutamente particular: ela não tem conteúdo [...] nem a estrutura enunciativa de uma palavra de ordem de uma manifestação política [...]10. Esse dizer do outro, visto em diversos contextos, transcende a estrutura da palavra escrita, é o que Vigotski11 chama de sentidos da palavra.

No campo da educação, na contemporaneidade, os discursos que perpassam os enunciados silenciados dos educadores, embora não atendidos enquanto reinvindicação, não deixam de ser discursos enunciados em uma estreita relação com o poder. Não o poder em sua macroesfera, o micropoder, aquele que é manifestado por todos em suas relações – do ponto de vista das políticas educacionais, o estado como poder que regulamenta a ação do professor abafa os discursos docentes, mas esses docentes não são inocentes, abafa os discursos dos alunos. Esses, por sua vez, abafam os discursos dos colegas e assim por diante. Em suma, o poder se desvela em micropoder(es) em que todos o têm e ao mesmo tempo não têm.

O discurso também se faz pelos signos, e é por meio deles que o indivíduo controla suas ações. A palavra que é o signo humano por excelência, além de comandar o outro (ordem), difere-nos dos animais, pela significação. Pela significação da palavra (significação do signo) e dos atos nos tornamos seres sociais. Esse raciocínio nos permite pontuar a esfera social e o modo como nos sociabilizamos pela palavra – não somos meros frutos do evolucionismo, mas sim autores da nossa própria história, ao transformarmos a natureza para as nossas necessidades nos modificamos, por isso, somos capazes de representar e simbolizar, é pela mediação semiótica que atribuímos significado. O processo estabelecido entre palavra, homem e significado social da palavra pode ser chamado de mediação semiótica.
A mediação semiótica “[...] cria as possibilidades de reelaboração (recriação) da realidade. A realidade por sua vez está estabelecida, segundo o próprio Vigotski, como um elo em que o signo, a atividade e a consciência interagem socialmente”12. Nesse sentido, a relação entre o eu e o outro passa a ser mediada por um outro elemento. A mediação semiótica acontece quando, pela linguagem, são atribuídos sentidos nas trocas entre os sujeitos. Por meio da mediação semiótica se concretizam as possibilidades de desenvolvimento psíquico superior13.

Bakhtin explica que é por meio da língua que se atribuem significados para suprir as necessidades do falante. Porém, claramente para o autor o aspecto da língua em sua forma não é o fundamental; é o contexto no qual estão imersos os falantes. Assim, se “[...] uma forma linguística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor linguístico”14. É por isso que o sistema linguístico consiste na análise do objeto abstrato e pode ser essa análise frutífera ou não. Além disso, a transmissão da língua é uma irrealidade, pois os sujeitos não a recebem pronta, a língua é, portanto, um constructo social. É por meio do ato de fala que acontece a enunciação. A “[...] enunciação, não pode de forma alguma ser considerada como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicada a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante”15. Tudo é construção humana. Nas proposições de Bakhtin16, até o monólogo é social. Eu converso comigo, mas não é exatamente eu, são as várias vozes que me atravessaram, são os sujeitos que me deslocam e me constituem. Entendemos, portanto, que a expressão da fala está carregada de conteúdo do sujeito e de conteúdos externos a ele. Ademais, a língua é um sistema que constitui o processo de evolução como algo ininterrupto.

A palavra, ato tipicamente humano, signo por excelência, diferencia-nos dos animais e, por mais que existam espécies com aparelho fonético propício à reprodução de palavras, não apresenta intelectualidade ao reproduzir os sons17. Abarcados por essa compreensão, consideramos que o desenvolvimento humano só finda quando a pessoa deixa de existir – na morte do corpo. Buscando entender a palavra, vamos ao seguinte exemplo.

Ao ler Experiência e pobreza de Walter Benjamin18, o autor nos conta a parábola de um velho que, na ânsia de sua morte, relata aos filhos um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não o encontram. Passado algum tempo, as vinhas produzem bastante e eles percebem que o pai transmitira uma experiência: a felicidade não estava no tesouro, mas no trabalho. Esse saber passado de pai para filho evoca inúmeros discursos, mas neste texto seguimos três possíveis, o primeiro é a ideia de que a palavra, embora tenha um significado geral (dicionário), ela possui muitos sentidos, no caso trazido, a felicidade não tem o sentido de riso, mas de trabalho. O segundo ponto diz respeito ao desenvolvimento humano estar arraigado na cultura, é situado no tempo e espaço, é significado para cada pessoa de forma diferente, nesse processo, as verdades não são absolutas, as pessoas são singulares e, em suas vivências, representam o meio que as tocam, os outros que medeiam suas relações; outros signos, instrumentos, outras pessoas, outros lugares, outras narrativas, enfim, infindáveis outros.

O significado da palavra19 é diferente para cada pessoa, isso não significa que cada um inventa uma nova língua, mas que atribui representações de significados por seus falantes, por exemplo: posso me referir à casa como uma casa de fazenda, para outra pessoa, casa pode ser representada por um apartamento, ambos não deixam de representar casa, por isso o processo de criação se torna individual, embasado nas vivências de seus locutores. E terceiro, nesse exemplo, percebemos um saber narrado, vivido, transmitido historicamente de pai para filho, e não considerou a velhice, como invalidade.
Essas proposições contribuem para olhar para o ser humano para além de sua matéria biológica e como um ser de possibilidades: de aprender, de viver, de se desenvolver, de ser, como humano, sempre mais. Essas ideias que vêm sendo incorporadas na educação, sobretudo de pessoas em condições particulares, como é o caso do deficiente, serve como fundamento e possibilidade para a superação da marca do diagnóstico. A não entrega à condição clínica se mostra como paradigma à ideia de passividade que se apresenta nos discursos do homem moderno e que o coloca em um lugar de impotência e adestramento, uma vez que a mesma palavra que tem o poder de constituir, pode, nessa constituição, condicionar a discursos de impossibilidade e colocar o homem a representações e discursos negativos – não pode, não consegue, fim da linha.
Nessa seara, compreender o homem como um ser de possibilidades tira-o da condição de condicionado ao fim e o reanima à luta – é a ética da bio. E por falar em luta, é por meio da, e na educação, que se cria um campo profícuo para conscientizar e humanizar as pessoas em suas condições de vida. Nessa perspectiva, os professores estão incumbidos de entender a ponte entra a escolarização, o conhecimento e o desenvolvimento de pessoas críticas e ativas frente aos percalços da vida. Culturalmente, a educação representa uma preparação e legitimação às formas particulares de vida social, de forma ampla, os teóricos argumentam que as escolas sempre racionalizam a indústria do conhecimento e a divisão de classe, reproduzindo desigualdade, racismo e sexismo, ideias que fragmentam as relações20.
Trouxemos até este ponto nossa perspectiva acerca do desenvolvimento humano como um processo histórico, datado e situado no tempo e tem na palavra a representatividade da humanidade do homem. A seguir, discorreremos ainda sob esse viés da possibilidade de o homem tornar-se mais, o papel da educação como meio/modo do sujeito se conscientizar sobre si, por meio da relação que se estabelece com o outro.

2 - Educação como um modo de conscientização

O desenvolvimento humano é um processo histórico, cultural e social. Inicia-se ao nascimento e finda com a morte. Até que a morte do corpo biológico aconteça, muito se tem a ensinar e a aprender, como no relato de Experiência e Pobreza21. Por mais que o desenvolvimento se inicie com o nascimento, o humano não se faz sozinho, aprendemos os gestos, os jeitos, os gostos, a falar e a nos relacionar sempre com o outro. Neste texto, vamos chamar esse processo de educação via conscientização.

O estudo de Agostini, Conscientização e a Educação: ação e reflexão que transformam o mundo22, investiga alguns dos processos históricos e dos usos do termo conscientização nos anos 1970. Naquele período, conscientização era vista como uma fórmula mágica para a mudança do mundo. Esse pensamento nos remete a uma pedagogia pronta a qual se aplica e logo o resultado aparece, não levando em consideração as lutas das classes e as camadas mais oprimidas da sociedade. Na sociedade brasileira contemporânea, na qual impera a relação virtualizada, sobretudo frente à pandemia de 2020, tem-se um movimento de transformação cuja conscientização pode ser entendida como modo de humanizar as relações. Agostini23 argumenta que a conscientização supõe um compromisso que envolve uma decisão lúcida no plano concreto, ou seja, o ser é ágil, sabendo ler o seu lugar no mundo, lendo-se como parte do mundo. Ressaltamos mais uma vez que, para o humano, aquilo que é adquirido para além dos fatores biológicos congênitos é adquirido na relação com o outro, o homem. Se tem-se uma relação que se constitui por meio da palavra, a mesma palavra tem o poder de negativar a atuação do outro no mundo, a ponto de estabelecer o fim do desenvolvimento com a pessoa viva.

Essa ideia da morte em vida tem íntima relação com os modos de produção – é o humano como utilidade, se produz, seja bem-vindo, se não, está invalidado. Esse estar invalidado, no campo da educação, sobretudo de pessoas autistas, tem no diagnóstico de autismo fator decisivo para o que essa pessoa poderá ou não fazer durante a vida. Educação como conscientização, está intimamente ligada à:
[...] descoberta do lugar e do sentido da existência do ser humano no mundo constitui o começo de um processo de conscientização que vai se aperfeiçoando gradativamente. A pessoa conscientizada é capaz de interpretar sua própria existência nas circunstâncias históricas em que vive. Por conseguinte, está sempre engajada na história, marcada por uma concepção do homem e por uma visão do mundo situada e datada. Este processo conduz à humanização do mundo e do próprio ser humano, cujo artífice é ele mesmo24.

Saber ler seu lugar no mundo pode, em muitos casos, transgredir e denunciar violências e subjetivação. Como dissemos via Vygotski25, se é por meio dos outros que nos tornamos nós mesmos, pelo poder da palavra, essa mesma palavra pode nos subjetivar, caso não estejamos conscientes de nosso lugar e papel no mundo. Lugar ocupado após receber a notícia de algum diagnóstico, ou por circunstâncias outras que nos fazem desacreditar em um novo começo possível. O conhecer a si e o olhar para si sobre os quais que discorremos até aqui se fazem por meio da educação. Ela é antes de mais nada uma criação cultural que transgride o corpo biológico. Educar e conscientizar é ensinar o homem que seus atos têm implicância na vida do outro, que suas palavras podem ferir o outro, por essa perspectiva, educar se faz como um ato de cuidado com a humanidade.

Até aqui explicamos o processo de desenvolvimento humano arraigado na história e na cultura. E como a educação, vista como conscientização, pode dizer sobre a pessoa e o lugar que ela pode ocupar, uma vez que a palavra do outro pode, em muitos casos, dizer quais caminhos os sujeitos podem percorrer.

A seguir, vamos adentrar a seara da saúde partindo da premissa que a ponte, o diálogo entre educação e saúde se estabelece a partir do cuidado.

3 - Educação e Saúde: interface via cuidado

O cuidado é uma prática cultural e tem como uma de suas definições “[...] a interação com os outros humanos, de observar, de perceber e interpretar suas necessidades [...]”26. Por essa perspectiva, é preciso compreender que o ser humano, além de se relacionar com o outro, possui certas necessidades que são entendidas como básicas, como é o caso da alimentação e da segurança física e psíquica, ambas construídas socialmente.

[...] o ato de cuidar está sujeito também à capacidade daquele que cuida de interagir com o outro, de identificar suas necessidades, capacidade construída no interior da cultura e pelas aprendizagens específicas de determinados conceitos, habilidades que têm por base os diversos campos de conhecimento que estudam o processo de desenvolvimento e o cuidado humano[...]27.

Um exemplo clássico de cuidado é o cuidado com as crianças. No campo da educação e em determinados contextos sociais e culturais, certas concepções de desenvolvimento vão dizer que o cuidado está em colocar o bebê no cercadinho, ou que o modo de segurar os bebês devesse ou não privilegiar aspectos que assegurem o desenvolvimento motor: segurando o bebê em pé, mantendo-o equilibrado sob a mão do adulto até que ele firme suas pernas. Outro caso que reitera o cuidado como prática cultural pode estar relacionado à valorização do choro e o responder com uma forma de cuidado, tipicamente, o conversar com o bebê e a oferta de um brinquedo, mamadeira ou chupeta28.

O cuidado em diálogo com o educar e com a saúde pode ter início nas práticas culturais e na necessidade que o outro, em condição menos favorecida, demanda. Aqui, retomamos o papel da palavra em Vygotsky29. A palavra que dá o significado, o outro diz mais de mim do que eu mesmo, nesse sentido, o significado cultural da saúde e da doença se “[...] referem à visão de mundo, às atitudes coletivas diante da infelicidade, ao rompimento do homem com os limites dados pelas regras sociais, ao corpo doente como espaço que simboliza o infeliz e o alienante naquela sociedade [...]”30. Assim, o cuidar se mostra como prática que promove a saúde e a educação, não somente a saúde, tampouco a educação, mas o diálogo entre essas grandes áreas que estudam e buscam compreender/cuidar do humano. Neste texto, tomamos a bioética como uma nova disciplina, que combina os conhecimentos biológicos e os conhecimentos que perpassam os sistemas de valores humanos.

4 - A Bioética

No termo Bioética, bio representa os conhecimentos biológicos e, ética, o conhecimento dos sistemas de valores humanos. A nova disciplina deveria construir uma ponte entre essas duas culturas, a cultura das ciências naturais e a cultura das ciências humanas, superando a lacuna existente entre elas. Há aproximadamente 50 anos, na Universidade de Wisconsin, em Madison, D.C., Van Rensselaer Potter, por ocasião da publicação de seu primeiro artigo, nos Estados Unidos, propõe o termo “bioética” com o conceito “Bioética como ponte para o futuro”31. Ponte entre ciência biológica e ética, mas como um meio para um fim, “ponte para o futuro” – disciplina que guiaria a humanidade, atribuindo a ela sentido em direção ao futuro32.
No ano seguinte, Potter lança o livro Bridge to the future com as seguintes inscrições na contracapa:

Ar e água poluída, explosão populacional, ecologia, conservação – muitas vozes falam, muitas definições são dadas. Quem está certo? As ideias se entrecruzam e existem argumentos conflitivos que confundem as questões e atrasam a ação. Qual é a resposta? O homem realmente está colocando em risco o seu meio ambiente? Não seria necessário aprimorar as condições que ele criou? A ameaça de sobrevivência é real ou se trata de pura propaganda de alguns teóricos histéricos? Esta nova ciência, bioética, combina o trabalho dos humanistas e cientistas cujos objetivos são sabedoria e conhecimento. A sabedoria é definida como o conhecimento de como usar o conhecimento para o bem social. A busca de sabedoria tem uma nova orientação porque a sobrevivência do homem está em jogo. Os valores éticos devem ser testados em termos de futuro e não podem estar distantes dos fatos biológicos. Ações que diminuem as chances de sobrevivência humana são imorais e devem ser julgadas em termos do conhecimento disponível e no monitoramento de parâmetros de sobrevivência que são escolhidos pelos cientistas e humanistas33.

O objetivo da bioética, ao adotar uma postura interdisciplinar, é considerar em um só campo os conhecimentos da biologia e da ética, com vista a fornecer elementos à humanidade para caminhar em direção a uma participação racional, mas cautelosa, no processo da evolução biológica e cultural.

As dimensões éticas examinadas na bioética tendem a enfocar várias questões maiores: qual é a visão moral da pessoa ou da sociedade? Que tipo de pessoa humana devemos ser? Que tipo de sociedade devemos construir? O que deve ser feito em situações específicas? Como vivermos harmoniosamente?

A Bioética pode ser tomada, inicialmente, como um movimento social que lutava pela ética nas ciências biológicas e áreas correlatas, antes de ser uma disciplina norteadora de teorias para o Biodireito e para a legislação. A finalidade primeira da bioética foi a de assegurar mais humanismo nas ações do cotidiano das práticas médicas e nas experimentações científicas que utilizam seres humanos. Essa visão, tanto de disciplina como de movimento social, confere à bioética a peculiaridade de ser, ao mesmo tempo, um campo de reflexão e ação sobre as questões do presente e as perspectivas de futuro quanto à saúde das populações34.

A Bioética é uma nova maneira de enfocar a ética nas ciências da vida e da saúde, combina estudo e reflexão e traça uma ponte entre as ciências biológicas e humanas, por meio de um diálogo inclusivo, plural e responsável, na busca de sabedoria, entendida como o conhecimento usado para o bem social e promoção da dignidade humana e da boa qualidade de vida para todos35.

A Bioética é a ética da vida, da saúde e do meio ambiente. Não se pode dela esperar uma padronização de valores, pois exige uma reflexão sobre estes e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há Bioética sem liberdade, liberdade para se fazer opção, por mais “angustiante” que possa ser. O exercício da Bioética exige, pois, liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem coação, sem coerção e sem preconceito e por meio de deliberação. É um processo de reflexão e ação procurando o melhor para as pessoas. Dessa maneira, as sociedades democráticas são mais propícias à Bioética36.

Bioética, ética da vida, é um espaço de diálogo transprofissional, transdisciplinar e transcultural na área da saúde e da vida, um grito pelo resgate da dignidade da pessoa humana, dando ênfase à qualidade de vida: proteção à vida humana e seu ambiente. Não é ética pré-fabricada, mas um processo37. Durante muito tempo a Bioética era associada apenas aos deveres existentes entre seres humanos contemporâneos e geograficamente próximos. A expansão da discussão dos direitos e deveres com a inclusão de todos os seres vivos, tanto contemporâneos quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade e a perspectiva atual da Bioética38.

Atualmente, discutir apenas a preservação do ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. Na área da saúde, essa questão também está cada vez mais presente. Distinguir os processos naturais de ação do organismo humano dos provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em determinadas situações, impossível. Hans Jonas, ao propor a ética da responsabilidade, já havia dito que nenhuma ética anterior tinha de levar em consideração a condição global da vida humana e o futuro distante ou até mesmo a existência da espécie. Com a consciência da extrema vulnerabilidade da natureza à intervenção tecnológica do homem, surge a ecologia que veio trazer uma nova e complexa visão da inserção dos seres humanos no conjunto da natureza39. Portanto, Hans Jonas tenta mostrar que nós, como habitantes do Planeta Terra, devemos ser responsáveis por ele e pelo cuidado dele deixando de lado aquele pensamento de que nada vai acabar, de que o que importa é o agora.

Os referenciais englobam questões múltiplas, além de direitos e deveres que devem ser, também, pontos de referência para a elaboração do diálogo bioético. Enquanto a teoria dos princípios pode ser representada pela figura de um quadrado, sendo cada lado um princípio, com a imagem de “fechamento”, a ideia (ou teoria) dos referenciais pode ter a representação de um círculo, mas um círculo aberto e dentro dele estariam os pontos de referência, dentre eles a não-maleficência, a autonomia, a justiça, a dignidade, a solidariedade, a fraternidade, a confidencialidade, a privacidade, a vulnerabilidade, a responsabilidade, a sobrevivência, a qualidade de vida. Os referenciais não estariam linearmente atrelados entre si, mas livres para a interação que a situação bioética, em análise, levaria a exigir. Direitos, deveres, valores, compromissos e sentimentos éticos, em plena liberdade de atuação pluralista, inter e transdisciplinar, agregando ciências biológicas com os demais ramos do conhecimento.

Os “princípios” passam, então, a ser considerados como “referenciais”. Hossne40, face à insuficiência dos princípios na discussão dos problemas e dos conflitos, apresenta a ideia de usar os princípios como referenciais, acrescentado outros referenciais com a intenção de trazer novos subsídios à adequada deliberação ética. A Bioética, hoje, está presente em todos os aspectos da existência humana, tendo como foco norteadores os princípios e os referenciais. Citamos alguns: respeito à pessoa humana, ética da vida, dignidade, vulnerabilidade, solidariedade, alteridade, dentre muitos outros que integram o Sistema Aberto dos Referenciais. Para que seja possível a intermediação da bioética na educação para cuidados paliativos, e movido por um sentimento de humanidade, selecionamos alguns referenciais que se encontram atrelados a esse estudo e constituirão nosso roteiro dentro do Sistema Aberto dos Referenciais Bioéticos. São eles, a dignidade da pessoa humana; a vulnerabilidade; a alteridade.
O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, em todos os campos, especialmente no aspecto dos Cuidados Paliativos. Aqui será tratado como um referencial bioético. O termo “princípio” é empregado para designar as diretrizes – implícitas ou explícitas – que iluminam a interpretação das normas, constitucionais ou infraconstitucionais, no ordenamento jurídico, não podendo, pois, afastá-lo da aplicação face às normas, uma vez que nenhuma interpretação será bem-feita se for desprezado um princípio41. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se presente em tudo que guarda relação com a essência do ser humano, estando, assim, vinculado de forma indissociável com os direitos fundamentais. Explica-se, dessa forma, o porquê tratá-lo como referencial bioético, uma vez que guarda relação com a essência do ser humano.

Podemos encontrar regras principiológicas tanto na Constituição Federal42 como em outras normas que compõem o sistema jurídico, contudo, o princípio emanado da Carta Magna impõe certa relação de subordinação aos demais enunciados do ordenamento jurídico interno. O princípio da dignidade da pessoa humana está disposto como um dos fundamentos da Constituição43, em seu artigo 1.º - “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;”, influenciando a interpretação de alguma coisa e não somente da legislação infraconstitucional, mas também das normas contidas na Constituição da República, de modo inexorável.

A Constituição de 1988 ao dispor sobre a dignidade da pessoa humana e os direitos e garantias individuais como fundamento do nosso Estado Democrático de Direito, reconheceu que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que a finalidade precípua da atividade estatal é o ser humano, não constituindo este meio da mesma atividade. Entretanto, o constituinte considerou-a de maneira concreta e individualmente e, como salienta J. Miranda44, relembrando, assim, a ideia de Kant, de que a dignidade constitui atributo da pessoa individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, chama atenção o doutrinador de que não se deve confundir as noções de dignidade da pessoa e de dignidade humana, quando esta for referida à humanidade como um todo.
Para Barchifontaine45, a dignidade humana é o centro de todo o estudo da Bioética. Entendida como ética da vida, da saúde, do meio ambiente, a Bioética tem como finalidade o resgate da dignidade da pessoa humana e da qualidade de vida frente às políticas sociais e econômicas, o diálogo proposto e entabulado pela bioética é necessariamente um diálogo transdisciplinar, transprofissional e transcultural46. Habermas47 considera que historicamente a dignidade tem o seu primeiro foco da dignidade social no sentido da honra da pessoa. Ele aponta que, primeiramente, a dignidade tinha um sentido relacionado ao respeito social, ao ser membro de organizações e grupos sociais. Segundo, no sentido de honra social, participando de uma hierarquia, de onde deriva o respeito pessoal, por exemplo, um código de honra de uma determinada profissão, de um espírito corporativo48.

No pensamento do Papa São Leão Magno (440 a 461 – primeira fase do Cristianismo), a religião oficial do império indicava que os seres humanos tinham uma dignidade pelo fato que Deus os criou à sua imagem e semelhança49. No entanto, foi a partir das formulações de Cícero, em Roma, que se iniciou o desenvolvimento de compreensão da dignidade desvinculada da posição social, reconhecendo o sentido moral em virtude do mérito, integridade, lealdade, entre outras acepções.

Desta forma temos que a dignidade é um conceito imaterial inerente ao ser humano, ela está se constituindo à medida em que constrói a realidade, compondo o campo subjetivo de cada ser. Ainda a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que concentra todos os demais direitos fundamentais do homem, entre eles o direito à vida, não podendo deixar de considerar os direitos sociais, esculpidos no artigo 6. º e seguintes da Carta Magna e no Título da Ordem Social, bem como o defendido na Ordem Econômica que dispõe o artigo 170: “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Sendo reconhecida pelo ordenamento jurídico estatal, a dignidade da pessoa humana passou a integrar o direito positivo, e analisando seu status jurídico-normativo no âmbito de nosso ordenamento constitucional, o que percebemos é que o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol de direitos e garantias fundamentais, mas sim a colocou na condição de princípio jurídico-constitucional fundamental.

4 A Vulnerabilidade e a Alteridade

Todos somos mortais; todos somos vulneráveis. Em sentido comum, de acordo com o dicionário Aurélio50, vulnerabilidade é “a qualidade ou estado de vulnerável”; vulnerável é “que pode ser vulnerado” e vulnerar é “ferir, ofender, melindrar”. Neste sentido, todos nós somos vulneráveis, pois todos estamos sujeitos, de alguma maneira, a sermos feridos (em qualquer sentido), ofendidos ou melindrados, intencionalmente ou não, por agentes de qualquer natureza (por pessoas, animais intempéries da natureza etc.) e até mesmo por acidentes. Aliás, todos os seres vivos estão sujeitos à vulnerabilidade. O ser humano e os demais animais têm em comum um tipo de defesa frente à vulnerabilidade – é a defesa instintiva, decorrente do instinto da sobrevivência. O ser humano, porém, além do instinto da sobrevivência, pode ter noção, ciência e consciência de que ele é vulnerável, com a consequente “angústia” decorrente desse fato.
É por sabermos que somos vulneráveis e precisamos nos defender (até mesmo uns dos outros) que construímos convenções sociais, elaboramos leis, normas de conduta e até nos armamos51.
Poderia o ser humano ser invulnerável? O que é ser invulnerável? Invulnerabilidade é a “qualidade de invulnerável” e invulnerável é “inatacável”, e invulnerado é “que não está ferido, intacto, ileso”. O ser humano é sempre vulnerável; ele pode ou não estar em situação de vulnerabilidade. Portanto, ser vulnerável o ser humano é sempre; estar vulnerável pode ser sim ou não. Trata-se de ir de uma situação latente a uma situação manifesta; de uma situação de possibilidade para uma situação de probabilidade, do ser vulnerável ao estar vulnerável. Estas oscilações acompanham todas as situações que envolvem a Bioética.
Pensando no referencial da vulnerabilidade como possível dilema bioético atrelado aos cuidados paliativos, destacamos que estes não dizem respeito primordialmente aos cuidados institucionais, mas se constituem fundamentalmente de uma filosofia de cuidados. As questões bioéticas envolvidas nesse tema baseiam-se no reconhecimento do fato de que o paciente incurável ou em fase terminal não é um resíduo biológico por quem nada mais pode ser feito, cuja vida não deve ser prolongada desnecessariamente, mas uma pessoa, e como tal, capaz até o momento final de se relacionar, de tornar a vida uma experiência de crescimento e de plenitude.
O respeito a essa vulnerabilidade se dá por meio de uma comunicação habilidosa e uma espiritualidade adequada, que, para tanto, necessário se faz trazer à baila a educação aos profissionais como forma de garantia dessas questões. Lévinas52, enfatizando a figura do OUTRO, afirma: [...] a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido, sou responsável por outrem sem esperar a recíproca, ainda que isso me viesse custar a vida. A recíproca é assunto dele “[...] porque sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua responsabilidade. O eu, tem, sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros”.

A Alteridade, conforme Lévinas53, pode ser considerada como um dos fundamentos da reflexão bioética. Esta, contrariamente a outros enfoques que se voltam totalmente para a racionalidade, desconstruindo a “índole” afetiva dessa disciplina, é, fundamentalmente, a postura crítica face a situações que induzem sentimentos conflitantes, erigindo uma escala de valores com relação aos quais cada sujeito se posiciona de forma tão autônoma quanto possível. Resta, claro, por exemplo, elegendo-se o tema da eutanásia, que se pode atribuir maior valor à manutenção da vida a todo custo, até contrariamente à vontade do paciente, ou que se pode, diante do sofrimento, abreviá-la. Apenas pelo caminho dos afetos poderá haver empatia entre os dois atores, o profissional de saúde e o doente54.

Assim, percebe-se a alteridade integrada na vida afetiva do sujeito humano, podendo-se inclusive afirmar, em razão do que acima expusemos, que a presença dessa qualidade é um dos pressupostos de reflexão bioética. Destacamos, na bioética, o valor da condição de “perceber” o outro (ou os outros), que, já agora de forma ampliada, podemos chamar alteridade, sem a qual ficará sem fundamento qualquer tipo de decisão.

O tema – alteridade – presta-se a controvérsias e a compreensões diversas. Ora se projeta um facho que se busca emanado da personalidade de cada sujeito, ora o enfoque é mais voltado para os aspectos sociais. A inclusão do estudo da alteridade na Bioética, ainda que busque a autenticidade do “que vem de dentro”, por meio da hierarquização de valores de forma tão livre quanto possível, visa a uma harmonização social e ao “bom viver” em termos pessoais, sociais, ambientais e cósmicos55.

A alteridade, enquanto referencial para a reflexão bioética, suscita algumas condicionantes essenciais. O Outro precisa ser conhecido, reconhecido e entendido. Por isso, o Outro tem todo o direito de falar e exigir que seja ouvido e escutado, e Eu, Tu, ou Nós, temos o dever de ouvir e escutar o Outro. Da mesma forma, o Outro tem todo o direito de ser visto, ser enxergado em sua totalidade e Eu, Tu ou Nós temos o dever de enxergar e ver, ver e enxergar o Outro. Decorre daí, também, a necessidade de assegurar suficiente “foco de luz” sobre o Outro – em outras palavras, deve-se assegurar o mínimo de “claridade” para que se possa olhar, ver e enxergar o Outro. Não podemos esquecer, também, que, para ouvir e ver, é necessário ter-se o dom da “audição” e da “visão”, isto é, devemos estar capacitados e dispostos (isto é, querer) a ouvir e a ver. Conhecer o Outro implica levar em conta sua “biografia” de forma abrangente, incluindo sua espiritualidade e sua vulnerabilidade (como outro referencial). Respeitar o Outro, isto é, a alteridade, implica respeitar a autodeterminação, vale dizer, o referencial da autonomia56.

Ainda, não podemos deixar de citar o legado de São Camilo de Lellis nesta seara da Alteridade. São Camilo de Lellis57 foi um religioso italiano, fundador da Ordem dos Ministros dos Enfermos (Camilianos). É venerado como santo da Igreja Católica e é considerado protetor dos enfermos e dos hospitais. Foi ordenado sacerdote aos 34 anos. A sua companhia rapidamente se distingue pela caridade no tratamento de doentes. Em 21 de Setembro de 1591, o Papa Gregório XIV a reconhece como ordem religiosa. Em 8 de Dezembro de 1591, Camilo e seus companheiros fazem a sua profissão de fé, incluindo um quarto voto de dedicação aos doentes, ainda que com risco de sua própria vida.

Não bastou a Camilo tomar consigo apenas bons enfermeiros e alguns até médicos, os doentes careciam também de assistência religiosa. É evidente que a alma bem cuidada dispõe melhor o corpo para suportar os sofrimentos e sobrepor-se à doença. Vale destacar que antes de ser santo, Camilo não tinha qualquer ligação de fé no Senhor. Segundo relato de um companheiro, [Camilo] Contemplava nos doentes, com tão sentida emoção, a pessoa de Cristo que, muitas vezes, quando lhes dava de comer, pensando serem outros cristos, chegava a pedir-lhes a graça e o perdão dos pecados. Mantinha-se diante deles com tanto respeito, como se estivesse realmente na presença do Senhor. De nada falava com mais frequência e com mais fervor do que da santa caridade. O seu desejo era imprimi-la no coração de todos os homens58, respeitava e praticava a Alteridade, como referencial Bioético, sem saber que assim agia.

Considerações finais

Neste capítulo, tivemos o objetivo de mobilizar considerações que contribuem para se pensar na interface entre Educação, Saúde, Cuidado Paliativos e Bioética (a vida humana atravessada pelas criações culturais – valores e normas). Indo nos rastros desse objetivo, compreendemos que é por meio da educação que se estabelece a relação ética da vida humana. Por isso, a interface que propomos mobilizar nos dá indícios de como a cultura conduz o modo como o homem enfrenta as situações as quais atravessa em vida e como os valores estabelecidos socialmente, inventados pelo homem para viver uma vida mais justa, impacta-o nas situações mais adversas, sobretudo ao se considerar a finitude da vida.

Esse olhar deslocado do fatalismo se faz possível via educação, uma vez que é por meio dela que o homem aprende a ser humano, é um olhar ético, ou melhor, Bioético. A ética da vida: da saúde e do meio ambiente.

Sendo assim, as tessituras deste texto nos fazem acreditar no diálogo possível entre as diferentes abordagens científicas que se entrelaçam com o corpo humano e sua história, aliás, no respeito e na esperança do inacabamento do homem. Ademais, olhar para a Educação, Saúde e Cuidados paliativos nos desvela uma dimensão de completude e, ao mesmo tempo, inacabamento do homem, homem este sensível a doar-se ao outro, a humanizar-se com o outro, sobretudo ensinar e aprender com o outro: a cuidar.

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