Vivemos num planeta sob o signo da tragédia. Muitas são as adversidades, os flagelos, os desastres, os dramas. Os gregos trouxeram as tragédias, peças que apresentavam histórias tensas, de final infeliz, nascidas das paixões humanas para o palco das arenas. A plateia assistia tomada de terror e lágrimas de compaixão. Uma tragédia clássica deveria ter personagens de elevado destaque como deuses e heróis; linguagem elegante e solene; desenlace com sacrifício, morte ou punição. Acima de tudo, a força de um destino do qual não se pode fugir.
A chamada “Tragédia da Piedade” teve todos esses ingredientes: dela fizeram parte o escritor Euclides da Cunha (1886-1909), jornalista, correspondente de guerra, que cobriu os principais acontecimentos da Guerra de Canudos, conflito dos sertanejos da Bahia liderados pelo místico monge Antônio Conselheiro contra o Exército brasileiro. A partir dessa experiência e anotações publicou Os Sertões, epopeia
notável, obra-prima permeada de neologismos, referências geológicas, botânicas, zoológicas, hidrográficas, sociológicas da região, dando origem assim ao movimento modernista. Dilermando de Assis (1888-1951), também da carreira militar e Anna Emília Ribeiro da Cunha (1872-1951), esposa de Euclides da Cunha, filha do Marechal Sólon Ribeiro, que havia lutado na Guerra do Paraguai e amante de Dilermando. O triângulo amoroso foi formado e culminou na morte de Euclides da Cunha, que trocou tiros com Dilermando, na ânsia de lavar com sangue a sua honra, cumprindo o código da sociedade da época.
A tragédia começou quando Anna, aos trinta e três anos e com três filhos, encontrou Dilermando, sobrinho de umas amigas, jovem cadete de dezessete anos. Ficou encantada com a beleza dele, um verdadeiro deus loiro. Euclides ficava muito tempo longe, em campanhas. Anna se rendeu àquele amor proibido, do qual nasceram dois filhos: Mauro, que morreu logo depois do nascimento e Luís. Ao voltar, Euclides sentiu-se pressionado e, num domingo de 1909, dirigiu-se à casa de Dilermando, anunciando que vinha “matar ou morrer”. O confronto aconteceu na Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro. Os tiros disparados por Euclides feriram o irmão de Dilermando, o atleta Dinorah, que, tempos depois, obrigado a andar de muletas por causa das sequelas, suicidou-se. Dilermando, também ferido, mas com forte treinamento militar, sacou a arma e desferiu dois tiros letais em Euclides. Morrera assim o imortal da Academia Brasileira de Letras, estrela da Literatura Brasileira. Levado a júri popular, Dilermando é inocentado, em meio à fúria da massa. Anna Emília e Dilermando se casaram logo após a absolvição.
Em 4 de julho de 1916, Dilermando sofre novo atentado, desta vez por parte de Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, então com vinte e dois anos. Dilermando estava num cartório e foi alvejado pelas costas. Ferido, reagiu matando seu agressor. Os tentáculos da tragédia continuavam a triturar as almas e atingiram como polvo várias gerações das famílias da Cunha e Assis. Em mais um tribunal do júri, Dilermando é considerado inocente por ter agido em legítima defesa.
Vários livros foram escritos, durante anos, sobre essa tragédia como, por exemplo” Anna de Assis: a história de um trágico amor”, depoimento de Judith de Assis, filha de Anna Emília e Dilermando, de 1987 e “Águas de Amargura: o drama de Euclides da Cunha e Anna” , de 1990, depoimento dado a Adelino Brandão pelo marido de uma das netas de Euclides da cunha, Eliethe da Cunha Tostes. O próprio Dilermando de Assis escreveu vários livros em sua autodefesa como: “A Tragédia da Piedade: mentiras e calúnias” e “A Vida Dramática de Euclides da Cunha”.
Anna Emília e Dilermando seguiram juntos e tiveram mais filhos, três homens e duas mulheres, até que, em 1926, o casal se separou. Dilermando apaixonara- se por Maria Antonieta de Araújo Jorge, com quem teve uma filha, Dirce de Assis Cavalcanti, fina poetisa e filha amorosa, que escreveu o livro O Pai, sempre tentando restaurar a imagem de seu pai. Há pouco, Dirce, que está com noventa e um anos,
compareceu à estreia do espetáculo “Matar ou Morrer”, da dramaturga Miriam Halfim, em cartaz no Rio de Janeiro.
Dilermando, em sua carreira até o posto de general, viveu em muitas cidades pelo país. Recebeu o título de ex-combatente por ter participado de operações bélicas na defesa da costa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial; foi diretor do Departamento de Estrada de Rodagem e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Nessas andanças chegou a Bela Vista, município do centro-oeste, no então sul de Mato Grosso. Essa cidade fica na fronteira com o Paraguai, entre savanas e várzeas, banhada pelo Rio Apa. O Apa nasce na Serra de Amambai e deságua no Rio Paraguai, num percurso tortuoso. Um rio verde e embaçado como folha, sempre quente.
Imagino como deve ter se sentido naquelas lonjuras, onde a Guerra do Paraguai foi sanguinolenta e que o Coronel Camisão atravessou na célebre marcha até Laguna. Terras outrora marcadas pelo Caminho de Peabiru, que ligava o império inca ao litoral do Brasil; pelos confrontos entre portugueses e castelhanos, brasileiros e paraguaios na ânsia de anexar esses espaços aos países de origem; pelas correntes migratórias do Rio Grande do Sul complementando o povoamento no rastro da exploração da erva-mate, cujo monopólio era mantido pela Companhia Mate Laranjeira; pelo tráfico de drogas e contrabandos de armas e mercadorias roubadas. Complexa e perigosa fronteira.
Deve ter ficado deslumbrado com o conjunto arquitetônico formado pelo prédio branco do Quartel do Exército, que data de 1900 e pela Igreja de Santo Afonso, de estilo gótico, dedicada a esse teólogo que fundou a Congregação Redentorista, muito presente em Bela Vista. À frente um extenso gramado onde os homens jogam polo a cavalo, golpeando a pequena bola de madeira com um taco longo. Parecem os soldados ingleses que trouxeram o esporte da Índia, no período de sua colonização. Os cavalos são espécimes belíssimos, qualificados para as disputas de um jogo elegante.
Graças ao Coronel Sérgio Lima, consegui um relatório da presença do então Major Dilermando de Assis em Bela Vista. Ele chegou no primeiro semestre de 1936, na Praça Tenente Osvaldo Wagner, onde havia sete casas de uma vila militar, as primeiras construídas naquela guarnição. A antiga casa número 1, atual número 9, foi privativa dos comandantes do quartel. O major Dilermando de Assis, ao assumir o comando do Regimento, ocupou essa casa entre copas de laranjeiras.
Sabe-se que seguiu com o Regimento para Itá, a fim de fazer exercícios de fim de ano; classificou-se em primeiro lugar na prova de tiro de fuzil, em comemoração ao Dia da Pátria, tendo recebido como prêmio um buquê de flores, oferecido pela sociedade bela-vistense; fez inspeções nos destacamentos da Região de Porteira e de Margarida; fez um requerimento solicitando a impressão de um livro, que foi autorizada pela Revista Militar Brasileira; recebeu medalha de ouro com as devidas honras, pelo Tenente Coronel Henrique de Azevedo Futura; depois de entregar o comando aos seu substituto, Major Benjamin Constant Moutinho Ribeiro da Costa, seguiu para o Rio de Janeiro como chefe de seção do Estado Maior da Primeira Região Militar.
Dilermando foi reconhecido pelo fato de produzir na invernada do Exército, verduras para o consumo dos praças, numa iniciativa ecológica e sustentável, digna de aplausos. Dilermando estava impressionado com as dificuldades de comunicação da isolada e distante Bela Vista e com a precariedade dos recursos locais, em termos de uma alimentação mais variada. Carne seca, abóbora e mandioca eram praticamente as únicas opções no cardápio. A Unidade não se achava aparelhada para enfrentar plantio e colheitas com as exigências da instrução militar, mas a operosidade e inteligência de Dilermando permitiram uma tropa bem apresentada e disciplinada e atendimento de outras tarefas com eficiência. Passou, portanto, de junho a dezembro em Bela Vista. Certamente, essa experiência ficou impressa em seu espírito, ao som de harpas, polcas e guarânias.
Dilermando de Assis morreu aos 63 anos, vítima de um infarto fulminante, seis meses depois da morte de Anna Emília. Uma dor forte no peito, como a dor que carregou em permanente tensão por toda a vida.