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  • Fonte: Raquel Naveira

Raquel Naveira

Raquel Naveira cronicas b2714

Tenho desde a infância uma forte ligação com a fronteira. Passávamos as férias na pequena cidade de Bela Vista, à beira do rio Apa, numa casa de madeira cinza, com latas de espadas-de-são-jorge na frente, caramanchão de maracujá ao fundo, laranjal ao lado. A casa era de meus tios-avós: Fabrício Pilar, o Pila, magrinho, sacudido, gogó que subia e descia pelo pescoço enquanto contava casos, servia mate ou escarrava nas touceiras de capim, usava bombachas e chiripá; Anita, sua mulher, era uma paraguaia meio índia, de longos cabelos grisalhos presos em coque no alto da cabeça, fazia chipa, falava guarani, atiçava a lenha do enorme fogão, que parecia um navio. O sítio deles chamava-se “Vingança” e só de ouvir esse nome eu já sentia cheiro de sangue pairando no ar da região, naquelas tardes quentes.

Ali eu me tornava uma bugrinha brincando com lama, calçando chinelas de borracha, pulando cercas de arame farpado, estirando-me como um gato no chão batido das casas pobres de pau-a-pique.

Foi a partir daí que comecei a ouvir histórias sobre a Guerra do Paraguai. Histórias picadas, trechos de conversas, como uma colcha de retalhos. As de que mais gostava eram as que falavam sobre “enterros”, tesouros escondidos. Tio Pila explicava: “É verdade, o ditador Solano Lópes enterrou o tesouro nacional, joias da amante dele, Madame Lynch, relógios de ouro e diamantes, louças inglesas, moedas e patacões. Dizem que foi embaixo de uma árvore, lá perto do rio Aquibadã. Mas tem enterro por toda parte, todo mundo cavava e escondia o que tinha. Enterro é assim, some, anda por baixo da terra, ninguém nunca mais acha”. O tio pigarreava e continuava seus relatos desencontrados: “Aqui tem muita criança, se não eu contava direitinho as barbaridades que o cabo Lacerda, o Chico Diabo, fez
com o cadáver do Solano Lópes, cortou a orelha dele...” Pigarreava de novo: “... não dá pra contar, tem criança demais aqui.”

E a gente imaginava, sentia arrepios, tremores, às vezes dormia com aquela sensação de torpor da guerra, o barulho dos grilos e das cigarras, o distante ruído de harpas dedilhadas do outro lado do rio.

Até hoje, quando o vejo no Paraguai os guardinhas, os “tarrachis”, as mulheres vestidas de luto, as lavadeiras, as índias com cestos de laranjas, não consigo deixar de sentir uma vergonha, uma tristeza. Como pudemos arrasar assim um país que resplandecia? Por que nos tratamos assim? Por que houve uma guerra, um mundo de sangue e ódio entre nós? O que ganhamos com essa guerra além de desprezo e destruição? Como suportamos encarar esses sofridos irmãos paraguaios, neste lugar onde o Brasil é Paraguai e o Paraguai é Brasil?
A Guerra do Paraguai serviu de pano-de-fundo para romances históricos. Li dois romances sobre esse assunto épico: Avante, Soldados: Para Trás, de Deonísio Silva, editora Siciliano, 1992 e Madame Lynch, de Maria Concepcion L. de Chaves, tradução de Manuel Campos, Livraria Freitas Bastos S/A, 1960. Gostaria de analisá-los ressaltando o mesmo tema sob um ponto de vista masculino e outro feminino.

Avante, Soldados: Para Trás, de Deonísio Silva, recebeu o Prêmio Internacional de Literatura Casa de Las Américas 1992. O júri foi integrado por Carlos Nejar e José Saramago. É uma história de amor entre inimigos, em meio às cenas heroicas e trágicas da Retirada da Laguna. Os personagens principais são o Visconde de Taunay; o coronel Carlos Camisão, sua amante paraguaia imaginada pelo autor, Mercedes e um brasileiro, escritor, narrador do livro, que ao fim casa-se com Mercedes e a leva de Assunção para o Brasil, para a Fazenda Conde do Pinhal, nos arredores de Santo Carlos, onde constituem família. Esse narrador é um alter-ego do próprio Deonísio ou uma extensão plebeia do Visconde de Taunay ou uma forma do escritor colocar-se na pele de seus personagens, vivendo seus dramas, penetrando num túnel do tempo, só possível graças à magia da metalinguagem.

Há em Deonísio, como em todo narrador masculino, uma preocupação com os fatos da guerra, com o número dos mortos, com as peripécias sexuais e sanguinárias dos soldados, com os instintos baixos e animalescos que vêm à tona no borbulhar da guerra.

Encontramos em Deonísio bonitas imagens. Como esquecer a cena das galopeiras paraguaias? “As paraguaias e os cavalos formavam centauras cheias de graça, harmoniosas, velozes, unindo força e beleza, duo raro numa guerra. Traziam nos cabelos ramos de flores, essas misteriosas mitacunhãs,.” E há citações do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, abrindo com ricas epígrafes os capítulos; o jogo esmerado e fino com as palavras; as observações filosóficas e questionamentos poéticos sobre o personagem Visconde de Taunay e sua função superior: a de escrever. (“Dúvidas enchiam a cabeça do francês. Encheriam também as dos outros? Da cabeça do francês dúvidas iriam para onde? A cabeça dele seria como o mar da Galileia, que recebia todas as águas e depois de pensadas as passaria adiante, destinando-as ao mar Morto das soluções ligeiras? Ou sua cabeça seria morta como aquele mar, devido ao calor? Tais dúvidas ninguém as tinha, de sua cabeça elas migravam para suas
mãos-galileias, que as remetiam ao papel, que viajaria além de todo mar, para longe, mortas não ficando, ao contrário, vivendo para sempre. Por isso escrevia todo santo dia.”)

Madame Lynch, de Maria Conception L. de Chaves, é um romance histórico, comovente. Um perfil grandioso de mulher. Conta a história de Elisa Alicia Lynch, amante do ditador Francisco Solano Lópes, sua fiel companheira na glória e na tragédia. Elisa tinha dezoito anos, olhos azuis e cabelos de fogo. Era irlandesa, casada, quando conheceu o jovem ministro plenipotenciário do Paraguai, Solano Lópes, vivendo com ele na corte do Imperador Napoleão III, onde eram tratados como verdadeiros príncipes. Lópes estava fascinado pelo poder militar, pelo luxo, pela cultura, pelo fausto europeu. Chegaram ao Paraguai, cheios de sonhos e juventude, desafiando preconceitos. Elisa é rechaçada e marginalizada por todos. Vê-se confinada numa quinta distante da cidade, lutando contra a família de Lópes e os rumores maledicentes da sociedade. A necessidade de sobrevivência faz com que revolucione costumes, lance modismos, prepare festas e recepções, cultue o teatro, a música e a poesia.

Tudo para manter viva a chama do seu amor. Lópes, contudo, nunca a assume plenamente,mantendo-a numa condição inferior e humilhante. Vive um amor paralelo com Joana Pessoa, como se as duas mulheres de gênios e compleições diferentes fossem necessárias para seu equilíbrio. Quando começa a guerra, Madame Lynch segue o marechal pelos acampamentos, permanecendo a seu lado durante os cinco longos anos de lutas e ódios até o assassinato de Lópes em Cerro Corá. Com a ajuda do Conde d’Eu regressa à Europa. Morre em Paris, depois de haver criado os filhos em meio a dificuldades e penúrias materiais, sem nunca ter conseguido tomar posse dos bens que Lópes lhe deixara.

Há em Maria Conception, como em toda mulher, uma preocupação com os sentimentos, com o que se passa nas almas e nos corações solitários e amargurados, com os detalhes da vida que formaram o caráter de cada pessoa. Descreve gestos, olhares, lágrimas,

encontros. Questiona o que pode ter levado um homem, um povo inteiro à guerra, aos ideais de vitória e triunfo , a um holocausto em nome da honra.

O trabalho linguístico não tem aquele toque de modernidade encontrado em Deonísio. O estilo é mais pomposo, embora não faltem descrições de ambientes, como neste trecho: “Lópes, sob qualquer pretexto, abria seus salões e realizava reuniões encantadoras.

Convidava os melhores homens de seu tempo e as mulheres mais interessantes. Não se preocupava com o que custava a satisfação de seus convidados, porque sua generosidade não tinha limites e sua hospitalidade era proverbial. Exercitava seu sentido de voluptuosidade com a vida, com a ordenação e a alteração dos velhos preconceitos por mãos elegantes.” Ou descrições da natureza, como neste: “Golpeou a rocha verde, sorveu a água cheia de luar, apanhou algumas folhas mortas em fuga sobre a corrente, de súbito, seu coração se encolheu.

Um pressentimento duro e frio fizera-o compreender que nunca mais engendraria um filho sobre aquelas rochas aveludadas, que não adormeceria nos braços de Elisa, embalado pelo cristal sonoro das cascatas, sob a copa daquelas árvores estremecidas de gorjeios.”

O certo é que todo o tempo, lendo os dois romances, tremi de emoção diante de cada palavra que me despertava remotas e fundas lembranças como nomes de localidades: Chaco, Jardim, Bela Vista, Curuzu, Curupaiti, Humaitá, Caacupê, Tuiuti, Tibicuari; famílias conhecidas como Carmona, Urbieta, Pedra, Caballero; plantas como cedros, laranjeiras, ipês, gencianas e jacintos; de animais e aves como jacarés, garças, jaburus e colhereiros. Como é belo sentir dentro de nós essas ressonâncias, esse ecos que nos sacodem até ao cerne, às raízes de nosso eu interior.

Fica, no entanto, uma dúvida, uma dor: como seríamos, nós, brasileiros, paraguaios, sul-americanos, se não tivesse havido a guerra, a pauperização, o retrocesso de mais de cem anos? Em que ponto de civilização, educação e cultura estaríamos? Soam em meus ouvidos o versos finais da música “Sonhos Guaranis”, de Paulinho Simões: “Mato Grosso espera, esquecer quisera o som dos fuzis, se não fosse a guerra, que sabe hoje era outro país.”