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  • Fonte: Helio Begliomini

A memória é o perfume da alma

(Amandine Aurore Lucile Dupin (1804-1876), baronesa de Dudevant e conhecida pelo pseudônimo de “George Sand”, destacou-se como romancista e memorialista francesa).

Fui duplamente privilegiado com este livro – “Um Cirurgião Sob o Olhar de Deus – Uma Introdução Às Ciências do Cérebro, da Mente e do Espírito”, do eminente e renomado neurocirurgião, professor emérito, polímata e fecundo escritor, Raul Marino Júnior.

Primeiro, por ter tido a honra de ter sido convidado para posfaciá-lo. Segundo e em decorrência da condição anterior, por ter sido um dos primeiros a ler seu extenso, denso e cativante conteúdo!

Aliás, muito sorvi dessa leitura feita ainda quando esta obra não havia sido editada, estando seus capítulos na sequência, jungidos por uma espiral.

Curiosamente, muito me apraz esse estilo de leitura. Este arrojado empreendimento pode ser classificado como uma autobiografia ou um livro de memórias. E quantas e belas recordações!

Raul Marino Jr livro 38ee1O autor escreve ora na primeira pessoa do singular, ora primeira pessoa do plural, e essa conjugação não é tão simples assim quando se quer evidenciar o eu próprio. Demanda muita coragem em se expor e até em se “desnudar” perante seus leitores, mostrando não somente a intimidade de sua vida, de suas ideias, propósitos, formação, experiências, mas também de seus desacertos e sentimentos. O próprio autor – Raul Marino Júnior – expressa que este é um livro de “memorabilia”.

Já tive também a ousadia de publicar um livro de memórias2 e sei bem do estou expressando e dos desdobramentos positivos e negativos que essa empreitada poderá acarretar. Contudo, uma abordagem assim, só é possível de se conseguir quando se reúne além de bravura, despojamento de si mesmo e um imprescindível grau de discernimento e maturidade intelectual, pois como já dissera o renomado poeta e ensaísta português Fernando Pessoa (1888-1935), “A memória é a consciência inserida no tempo”, que, aliás, nem todos tem coragem de torná-la pública.

Entretanto, esta obra tampouco encerra apenas memórias. Embora não seja científica, reúne diversos conhecimentos e reflexões relativos às neurociências lato sensu, à ética, à bioética, à teologia, à “neurofilosofia” e à “neuroteologia” – neologismos estes, dentre outros, utilizados no decorrer das páginas – e, tudo, embasado num cabedal de 115 referências bibliográficas!

O livro“Um Cirurgião Sob o Olhar de Deus – Uma Introdução Às Ciências do Cérebro, da Mente e do Espírito” começa situando seu autor – Raul Marino Júnior – em seus tempos de infância, tendo por pai um destacado profissional dentista, e por avô materno, um criador de cavalos, cuja fazenda, no início do século XX, surpreendentemente, se localizava no bairro, hoje populoso, do Tatuapé! Suas peripécias dessa primeva etapa da vida continuam-se no bairro do Ipiranga, onde, precocemente, já lhe despontava o interesse pela leitura, deliciando-se dentre os diversos autores, com a extensa obra de Monteiro Lobato (1882-1948).

Decidido a estudar medicina, Raul Marino Júnior preparou-se e venceu o difícil concurso de ingresso na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), onde, desde o início do curso, já demonstrava pendor pela cirurgia, pela investigação científica, como também seu encanto pela psiquiatria. Enquanto acadêmico foi monitor de neuroanatomia, fato que já demonstrava sua fascinação pelo cérebro humano.

Apesar da difícil e comprometida vida de estudante de medicina, resolveu ampliar e diversificar seus conhecimentos, estudando também filosofia, a fim de lhe dar ferramentas para se humanizar e entender melhor os mistérios das ideias e da mente humana. Inteligente e preparado foi aprovado ao final do segundo ano de medicina, como calouro da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, curso que lhe abriu não somente seu intelecto, mas também fê-lo se aproximar mais consistentemente de Deus. Contudo, com o advento do internato, no sexto ano de medicina – condição que lhe absorvia diuturnamente nas tarefas hospitalares –, obrigou-o a trancar a matrícula.

Seguem-se as experiências no Serviço Militar realizadas no Centro Preparatório de Oficiais da Reserva (CPOR), bem como no Hospital Militar do Cambuci, assim como os quatro árduos anos de especialização em neurocirurgia, onde vivia na condição de residente –morador de um modesto quarto, ao lado do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas, tudo narrado com pormenores e em vivas cores!

Aliás, escolher por se especializar em neurocirurgia e preterir a psiquiatria foi algo não somente difícil dele decidir, mas também muito acérrimo ao seu professor Antônio Carlos Pacheco e Silva (1898-1998), que nutria muitas esperanças em vê-lo triunfar nessa seara.

De espírito inquieto e insaciavelmente ávido por novos conhecimentos, Raul Marino Júnior decidiu fazer aprimoramentos no exterior. Estagiou com renomados médicos daquela contemporaneidade e, à mercê de seu interesse e disposição, frequentou e obteve conhecimentos em diversas instituições: Nos Estados Unidos da América (EUA), em Boston: na Lahey Clinic, Baptist Hospital, Deaconess Hospital, Children’s Hospital, Peter Bent Hospital, Boston City Hospital, Havard Medical School (onde foi research fellow), Massachussetts General Hospital e Massachussetts Institute of Technology. No Canadá, no Instituto Neurológico de Montreal e no Hospital Notre Dame da Universidade de Montreal. Retornando aos EUA, fez estágio no National Institutes of Health e no Centro de Neuropatologia do Hospital Walter Reed, ambos na cidade de Bethesda. Todo esse investimento e sacrifício pela busca de conhecimentos durou seis anos, além dos seis de graduação e outros quatro de especialização, que ele já tinha cumprido! Sim, ele esteve seis anos imerso em países da América do Norte, solitariamente, longe de sua família, de seus amigos, enfim, de sua pátria, numa época em que as comunicações eram precárias e demoradas – restando-lhe tão-somente as cartas –, visto que ligações telefônicas interurbanas e, particularmente as entre países, eram peremptoriamente proibitivas pelo altíssimo custo!

Anos mais tarde, Raul Marino Júnior fez também aprimoramentos no Hospital Saint’Anne, em Paris, novamente na cidade de Bethesda (USA), assim como no Japão, país que nutriu grande simpatia e onde esteve por 12 vezes!

À medida em que eu ia avançando na leitura – página por página, parágrafo por parágrafo, linha por linha – transportava-me no tempo, pois também vivi, a meu modo e na minha cronologia, grandes dificuldades em realizar o maior de todos os sonhos que tive na vida, acalentado desde os seis anos, que foi estudar e se graduar médico. Saga que também se desdobrou na realização de residência, que foi disputadíssima em virtude de haver tão-somente duas vagas; da prestação do serviço militar como médico, no CPOR e no mesmo hospital do Cambuci, bem como, de modo mais modesto, uma inaudita alegria de conhecer serviços médicos em estágio realizado na Austrália, obtido através bolsa de estudos da Rotary Foundation, outra concorrida façanha que também tive a oportunidade de auferir.

Esse extenso tempo de dedicação e de desprendimento pela busca do saber fala por si só, e Raul Marino Júnior merece encômios, reconhecimento, reverência e aplausos!

Interessante é que o autor viveu tempos heroicos, onde a neurocirurgia estava engatinhando, quando comparada ao seu estágio atual. Em sua saga conheceu profissionais que já se faziam protagonistas da história da especialidade – inclusive ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina(!); outros, que seriam reconhecidos ulteriormente como grandes homens da ciência e, particularmente da medicina, sendo reverenciados pela história e pelos seus continuadores. Neste particular, ressoa prazerosamente em minha mente, os ensinamentos impregnados de eloquência, que meu inesquecível e saudoso professor de microbiologia, o insigne mestre Carlos da Silva Lacaz (1915-2002) incutia em seus alunos. Dentre tantos aforismos que dizia com a finalidade de inspirar em seus pupilos conhecimentos e humanismo, repetia à exaustão: “Bem-aventurados os que vivem na glória de seus feitos, no ensino dos discípulos, na sequência dos continuadores. Que os moços saibam recordá-los com imperecível fidelidade”. Quanto privilégio Raul Marino Júnior teve em poder participar de tanta riqueza humana e científica! De estar no “bojo do vento” ou no “arrebentar de ondas” da evolução do conhecimento nas neurociências!

De regresso ao Brasil, Raul Marino Júnior destacou-se também como empreendedor, bem como na carreira universitária. Assim, fundou, nas dependências da Clínica Psiquiátrica do Hospital das Clínicas, o “Centro de Neuropsicocirurgia” (Cenepsi, 1972) e criou a Divisão de Neurocirurgia Funcional (1977), onde à mercê do aprendizado vanguardeiro auferido no exterior, começou a fazer com êxito, tratamento cirúrgico de epilepsias; tratamento estereotáxico de movimentos anormais da doença de Parkinson e outras síndromes extrapiramidais, bem como de algumas doenças mentais (psicocirurgia); dos distúrbios neuroendócrinos por tumores ou microadenomas hipotálamo-hipofisários; assim como da dor crônica intensa e refratária à terapêutica clínica, tudo ilustrado com a experiência de alguns casos que serviram como paradigmas. Não tardou o reconhecimento e a Divisão de Neurocirurgia Funcional foi considerada como Centro de Referência do Ministério da Saúde (1989)! Seu empreendorismo não se encerrou por aqui! Fundou o Laboratório Experimental de Investigação Médica em Neurocirurgia Funcional (LIM45), na Faculdade de Medicina da USP; a criação e direção do Serviço de Neurocirurgia do Hospital Sírio-Libanês; O Instituto Neurológico de São Paulo (Inesp), no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo; o Centro de Estudos em Neurociências (Cenec) no Inesp, que, posteriormente, recebeu merecidamente por seus colaboradores, o epônimo de Centro de Estudos em Neurociências “Raul Marino Júnior”!

Contudo, carreira exitosa foi igualmente por ele propiciada a seus residentes, pois, muitos deles, conseguiram não somente realizar estágios nos EUA, Canadá, Alemanha, França e Inglaterra, como também vários, se tornaram docentes e professores titulares em neurocirurgia em outras universidades do país.

Por oportuno, deve-se salientar também que o autoré honesto e transparente ao tecer suas desolações em episódios como o insucesso da viabilização do então alvissareiro Instituto Brasileiro de Ética e Bioética (Ibradeb), que tanto planejou e acalentou!

Da mesma forma, por uma ironia do destino infligida ao grande neurocirurgião Raul Marino Júnior, narra que teve que ser submetido por duas vezes, a procedimentos concernentes à sua especialidade: Na primeira, em decorrência de uma hérnia de disco na região da sétima vértebra cervical, foi operado com sucesso, em Cincinatti (EUA); na segunda, por estenose do canal lombar, foi operado em São Paulo e, em decorrência, teve um pós-operatório tormentoso, chegando a ficar temporariamente paraplégico! Tudo explicitado com uma realidade à flor da pele, pois o autor dá à sua narrativa matizes apreensivos e cativantes.

Paralelamente aos seus empreendimentos, o autor vai conquistando todos os degraus da vida acadêmica na FMUSP: doutorado (1971); livre-docência (1979); e titular de neurocirurgia (1990). Contudo, tendo em vista sua preocupação com a ética, realizou posteriormente seu mestrado em bioética, na Universidade São Camilo (2007) e, galgou a condição de livre-docente em bioética e ética médica, no Departamento de Medicina Legal da FMUSP (2008).

Ainda não satisfeito com o diversificado conhecimento acumulado; fascinado pela dimensão ciclópica e pelo ordenamento do cosmos; encantado pela grandeza, perfeição e funcionalidade que o cérebro humano possui, denominando-o por “universo que habita em nós”; e sedento por melhor conhecer seu Criador, já na condição de professor titular de neurocirurgia, partiu novamente para um vestibular e cursou teologia, na Faculdade Pontifícia de Teologia Nossa Senhora da Assunção.

Toda essa saga, persistência, esforço e necessidade de sempre buscar mais e novos conhecimentos, a fim de dessedentar seu espírito irrequieto e investigativo, tornam Raul Marino Júnior um homem que sempre procurou dar respostas às mais nobres indagações da alma humana.

E nesse quesito, vale a pena observar no capítulo “O Fenômeno da Consciência” a ênfase que ele dá aos relatos das experiências de quase morte (EQM) e experiências fora do corpo (EFC), também recheadas de vivas narrativas, onde faz ilações substanciosas com a vida que se continua depois da morte. Aliás, para ele e para muitos, a vida é uma só, e a morte é apenas uma etapa da vida num corpo que irá se “pulverizar”.

Depreendi da leitura deste agradável e cativante livro, tanto implícita quanto explicitamente, muitos predicados valiosos de seu autor, dentre os quais destaco cinco, que também tenho perseguido ao longo da vida:

  1. Euforia contagiante pela medicina, pela neurociência e, sobremodo pela neurocirurgia, bem como pelo conhecimento do homem em sua essência, fazendo com que Raul Marino Júnior também se dedicasse ao estudo da ética, bioética, filosofia e teologia. Esse grande entusiasmo perpassa e transborda de toda esta obra, dando a impressão de que o autor, apesar do seu imenso cabedal de conhecimento conquistado arduamente ao longo de décadas, seja um jovem idealista, que não perdeu o viço em perseguir os objetivos sublimes e perenes da existência.
  1. Preocupação pela ética e, em especial, pela bioética, tornando-o um homem obstinado por essa disciplina, como a condição sine qua non de um relacionamento entre as pessoas mais verdadeiro, harmônico, construtivo, justo e promissor. Todavia, sua decepção é imensa ao verificar que não somente os políticos ignoram (desprezam) a ética, como também profissionais e faculdades dos mais tradicionais cursos, que ele menciona como advocacia, engenharia e medicina.

Contudo, apresento uma preocupação e um contraponto, pois, na bioética, alinham-se implícita e explicitamente protagonistas com proposituras e conceitos diametralmente antagônicos, parecendo até que em determinadas situações estão eivados de incoerência, quando não, do salutar bom senso e da lógica.

Raul Marino Júnior constitui-se numa respeitável autoridade sobre esse campo, pois não somente galgou uma livre-docência nessa disciplina, como também publicou sua tese, no livro “Em Busca de uma Bioética Global – Princípios para uma Moral Mundial e Universal e uma Medicina mais Humana” (2008).

Neste particular, tenho grande afinidade com o autor, pois além de ter participado por vários anos da Câmara Técnica de Urologia do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp); de ter publicado vários trabalhos afins; tive a inaudita honra e o espinhoso trabalho de exercer pois três vezes, a presidência do Departamento de Ética Médica e Defesa Profissional da Sociedade Brasileira de Urologia, experiência acumulada, que também culminou na publicação de um livro3.

  1. Gratidão a Deus e, em reconhecimento a todas as instituições e pessoas que lhe proporcionaram conhecimentos, oportunidades, tirocínio, enfim, que colaboraram em sua formação, evolução e maturidade como ser humano. A propósito, Raul Marino Júnior fez questão de incluir nesta obra, no Apêndice I, seu “Discurso de Posse” na veneranda Academia Paulista de Letras, como seu reconhecimento, felicidade, benquerença e gratidão por pertencer a tão augusto sodalício!

A propósito, penso que a gratidão é uma dentre tantas virtudes que diferenciam os racionais dos irracionais, apesar de nem sempre ser naqueles cultivada e, nestes, por vezes esboçada; é uma gangorra onde ambos os lados se encontram para cima: quem dá e quem recebe. Agradecer não rima com fingir, mas identifica-se com reconhecer; não é somente um ato da razão, mas também do coração; é penhorar-se delicadamente, pois agradecer é uma reverência ao outro, onde quem agradece despoja-se de sua autossuficiência, e quem recebe um agradecimento robustece sua autoestima; é reconhecer o outro melhor do que a si próprio em alguns ou em muitos aspectos. Agradecer, enfim, é reconhecer-se humildemente endividado. Se o ser não sabe agradecer não é humano.

  1. Respeito pela vida humana, que perpassa, transpassa e transborda deste livro de Raul Marino Júnior. Por incrível que possa parecer, infelizmente, membros de destaque de templos sagrados da arte hipocrática, nominalmente Faculdades de Medicina em seu corpo docente; Entidades e Sociedades de Especialidades Médicas e Conselhos Regionais de Medicina, nem sempre se posicionam equanimemente a favor da vida e do ser humano!

A vida – vocábulo difícil de se definir –, é um tema igualmente muito caro a mim, que depois de muitas elucubrações ao longo de anos e anos, redundou num pequeno e denso ensaio, que também tive o privilégio de publicar4. Penso que jamais existiram, existem ou existirão prêmios que possam ser ganhos em quaisquer loterias que sejam sequer comparáveis em termos de dificuldade e de valor ao inefável dom da vida. Pois, o valor da vida aproxima-se do fascinante gesto gerador, desinteresseiro e altruísta do Criador. Em outras palavras, a vida é um dote exponencialmente inestimável, imerecido e incompreensível. A vida se traduz no imensurável e imperscrutável milagre de existir. A vida é indivisa e um embrião humano é um ser humano em seus primórdios, com toda a sua importância e dignidade.A vida é o primeiro e o maior de todos os bens que o homem pode auferir. Nem mesmo a saúde a sobrepuja.Não há maior bem do que a vida. Ela é o primeiro e o maior patrimônio que o ser vivente poderia receber. Não há meia vida ou duas vidas e meia. Quem não a defende, não encerra reservas morais e idoneidade suficientes para pleitear conquistas de menor monta, como: melhores condições de saúde... trabalho... moradia... remuneração mais justa... formação técnico-profissional mais adequada... saneamento da corrupção... redução da violência... etc.

Por oportuno, cito que a inclusão do Anexo II, intitulado “O Milagre dos Transplantes”, dentre tantas passagens contidas nas linhas e entrelinhas desta obra, adorna e explicita essa preocupação e respeito que Raul Marino Júnior tem pela vida humana. Ademais, ele conclui o livro da seguinte maneira, ipsis litteris: “Gostaríamos de terminar este volume com uma única frase, que resumisse tudo o que já foi dito e escrito: “A VIDA DO HOMEM É SAGRADA! E ela deve ser vivida SOB O OLHAR DE DEUS!”.

  1. Teísmo, entendido como doutrina que professa a existência de um único Deus, de caráter pessoal e transcendente, soberano do universo e em intercâmbio com a criatura humana. Aliás, esse teísmo está explícito já no título desta obra: “Um Cirurgião Sob o Olhar de Deus – Uma Introdução Às Ciências do Cérebro, da Mente e do Espírito”.

Que bonito ver um grande intelectual e um renomado profissional, que galgou os píncaros da glória na ciência e nas letras, alguém da envergadura de Raul Marino Júnior, não ter vergonha em dizer que acredita em Deus! Ao contrário, ele tem orgulho de professar a sua fé em um Ser superior a todos e a todo o colossal universo, que está em contínua expansão; que é inatingível, imensurável e incognoscível em sua plenitude, pela limitadíssima e, por vezes, presunçosa inteligência humana! Se por um lado ele – Raul Marino Júnior – testemunha com muita humildade, assim como muitíssimos outros grandes homens e gênios da humanidade fizeram, em reconhecer-se ínfimo perante o Criador; por outro, atesta que não são incompatíveis a coexistência da ciência com a religião ou, em outras palavras, de um homem da ciência ser, ao mesmo tempo, um homem de fé em Deus! Aliás, é digno de nota e reflexão o que ele escreveu ao término do capítulo “O Cérebro, Nosso Amigo”: “Talvez algum dia possamos responder à mais sublime pergunta, cientificamente: ‘Você acredita em Deus?’ – Claro, sou um cientista!”.

Eu, particularmente, acredito também que o ser humano possui além do instinto de sobrevivência, o “da religiosidade”, o “da transcendência”. Aliás, desde priscas eras esse anseio está consignado no Salmo 63 (62), 2: “Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está sedenta de vós, e minha carne por vós anela como a terra árida e sequiosa, sem água”.

Por seu turno, o filósofo racionalista Benedict Spinoza (1632-1677) já asseverava no século XVII, que “é da natureza da razão perceber as coisas sob um certo aspecto de eternidade”. Contudo, acredito que quem melhor sintetizou a necessidade imanente de o ser humano buscar a Deus foi o genial e santo filósofo Aurélio Agostinho (354-430), bispo de Hipona. Em poucas e modestas palavras ele alinhavou esse conceito numa singela, porém densa oração – verdadeira pérola! –, em seu livro Confissões I 1: “Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousar em Ti”.

Ciência e religião não se podem anular, mas devem se complementar na busca insaciável da verdade. Aliás, o filósofo iluminista e escritor François-Marie Arouet (1694-1778), mais conhecido por Voltaire, em seu tempo e com sua irreverência, já dissera: “A voz de Deus nos diz constantemente: uma falsa ciência faz um homem ateu, mas uma verdadeira ciência leva o homem a Deus”. A desqualificação da ciência como todo-poderosa foi jocosamente definida por George Bernard Shaw (1856-1950), dramaturgo e romancista irlandês, galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1925: “A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos outros dez”. A arrogância que a ciência e seus militantes ateus tentam impingir aos mais incautos e pouco reflexivos foi sintetizada sutilmente por Jean Rostand (1894-1977), filósofo e escritor francês: “A ciência fez de nós deuses antes mesmo de merecermos ser homens”.

Penso que chegaríamos próximos à verdade se ao analisarmos um determinado fato, o víssemos simultaneamente não somente por todas as suas arestas, mas também pelo seu avesso, através da sua imanência interior. De maneira ubíqua ao longo do tempo; cabal quanto à sua forma e conteúdo; e onissapiente ao sabor do conhecimento. E para tal devem convergir todo o conhecimento disponibilizado pela ciência e pela sabedoria da religião, pois tanto uma quanto a outra têm limitações e metodologias nem sempre parecidas.

Com relação ao confortável status de ateu poder-se-ia tranquila e despretensiosamente dizer: A alegria do ateu é saber que Deus não pode ser provado. Sua tristeza é saber que tampouco se pode provar a inexistência Dele. Sua desolação é saber que entre as evidências racionais a favor e contra, as primeiras prevalecem.

Em outras palavras, por incrível que possa parecer, a segurança dos que acreditam em Deus é a mesma daqueles que O negam. Contudo, as considerações dos ateus desarticulam-se e volatilizam-se mais facilmente diante da argumentação filosófica, científica, lógica e racional.

Há deficientes que foram desprovidos total ou parcialmente de suas funções. Entretanto, também há aqueles que embora tenham suas funções preservadas não querem ou não as utilizam na busca da verdade. Figuradamente, são pessoas que veem..., mas não enxergam; mastigam..., mas não saboreiam; escutam..., mas não ouvem; deglutem..., mas não assimilam; entendem..., mas não compreendem; tocam..., mas não sentem; pensam..., mas não refletem; andam..., sem sair do lugar. E neste rol, seguramente, encontra-se boa parte dos crentes e dos ateus.

Em contrapartida, acredito também que a fronteira intelectual que separa o crente do incréu, paradoxalmente, é tênue, sinuosa e com nuanças sutis, favorecendo, por vezes, a mudança de posição tanto de um lado quando do outro.

Tendo por base este livro “Um Cirurgião Sob o Olhar de Deus – Uma Introdução Às Ciências do Cérebro, da Mente e do Espírito”, penso que qualquer pessoa que se diz ateia não por comodismo, mas por convicção e pela razão, é porque tem menos neurônios em seu cérebro, ou se os têm em número suficiente, boa parte deles possam certamente estar enferrujados, embolorados ou mesmo desativados à abstração, quando o assunto toca a metafísica.

Penso que a fé é uma resposta às nobres indagações do imo humano. É uma ousadia incoercível do intelecto e da liberdade. É uma penhora indefectível de si mesmo. É querer enxergar nítido o que está sutilmente velado.

Assim, concluindo, ousei fazer em poucas linhas uma resenha comentada que julgo estar acanhada e modesta em comparação à importância e à notoriedade do autor desta obra, que é membro honorário e ex-presidente (1993-1995) da augusta Academia de Medicina de São Paulo; titular da querida Academia Cristã de Letras e da egrégia Academia Paulista de Letras, dentre tantas outras entidades que tem participado e dirigido.

Um Cirurgião Sob o Olhar de Deus – Uma Introdução Às Ciências do Cérebro, da Mente e do Espírito”, do prolífico escritor Raul Marino Júnior, homem de ciência, de fé e das letras, é um livro sui generis. Contudo, melhor mesmo do que dizer, é convidar o leitor a saborear todo o seu contexto, sorvendo este livro por inteiro e tirando suas próprias impressões e conclusões.

Helio Begliomini

1 Este livro tem como autor o médico e escritor Raul Marino Júnior e foi publicado no segundo semestre de 2020. Este texto foi inserido nessa obra como “Posfácio”. Editora Manole, Barueri (SP), 2020.

2 Este livro de memórias, a me que refiro, denominei-o de “Rugas” – Expressão e Arte Gráfica, São Paulo, 2017.

3 O livro em questão teve por título “Urologia, Vida e Ética” – Expressão e Arte Gráfica, São Paulo, 2006.

4 O livro em questão teve por título “Dissecando a Vida” – Expressão e Arte Gráfica, São Paulo, 2008.