Como é bom quando se é jovem e se encontra uma arte à qual nos dedicamos por uma vida inteira! Aos vinte anos, já professora, estudiosa de literatura, descobri Clarice Lispector. Comecei então uma viagem intensa por seus livros, seu fazer literário intimista, sua trajetória projetada na pele de suas personagens, sua visão do ser feminino, sua busca de solução para o mistério da existência humana, numa complexa relação com o mundo e com a linguagem.
O primeiro tesouro, primeiro contato com seu texto foi Laços de Família, o livro de contos em que várias de suas marcas estão presentes: a exacerbação do universo interior; o fluxo da consciência através do discurso indireto livre, sob o ponto de vista de um narrador; o subjetivismo cheio de sensações; a falta de uma trama linear, pois o que importa não é a história a ser contada, mas a palavra que cria o acontecimento. Os dramas são psicológicos e metafísicos. As personagens, geralmente mulheres, estão dentro de sua rotina burguesa, quando são sacudidas por crises existenciais, choques que desequilibram o cotidiano, a estabilidade, a falsa segurança. No reino miúdo, superficial, quase fútil, explode de repente uma bomba, um mecanismo de fortes revelações. São verdadeiras epifanias: a existência transcorre dentro da normalidade até que o ritmo é quebrado e a personagem fica face a face com sua essência. Daí é um passo para atingir a transcendência, o êxtase, mesmo que seja por um instante.
Um dos contos que comprova esse processo é “Amor”: a inquietação de Ana no bonde lembrando de seus filhos “que eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta” e de seu marido que “chegava com os jornais e sorrindo de fome”, “a raiz firme das coisas”. Mas havia uma hora perigosa: a tarde, quando a casa ficava vazia. Ana desce no Jardim Botânico, depois de ter observado um cego mascando goma no bonde. A cena encheu-a de uma estranha compaixão. Diante das árvores, das dálias e tulipas, ela percebe o quanto o mundo era rico, exuberante. O quanto a vida era periclitante, horrível e frágil. Pensou que havia lugares longínquos, pobres ou suntuosos, que precisavam dela e ela precisava deles. Teve medo de sua vontade de partir em missão, de ter outro estilo de vida, com piedade de leão. Na volta, sua casa lhe pareceu triste. Ela atravessara o amor e seu inferno. E o fecho: “Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.” A cada conto uma surpresa, uma abstração, um arfar de emoção.
Passei a pesquisar sua biografia. Clarice nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia (Rússia), a 10 de dezembro de 1920. Seus pais judeus imigraram para o Brasil quando ela contava dois meses de idade. No Recife, cursa o primário e o secundário. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, ingressa na Faculdade de Direito. Forma-se em 1944, ano em que publica seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, fartamente aplaudido pela crítica. Casando-se nessa mesma época com um diplomata, Mauri Gurgel Valente, afasta-se do país, durante longo período (entre 1945 e 1959), mas não deixa de cultivar a Literatura, numa ascensão crescente de livro para livro. O casal teve dois filhos: Pedro e Paulo. Faleceu no Rio de Janeiro, a 9 de dezembro de 1977, aos 57 anos, deixando os seguintes romances: O Lustre, A Cidade Sitiada, A Maçã no Escuro, A Paixão segundo G.H., Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Água Viva, A Hora da Estrela; livros de contos: Alguns Contos e o citado Laços de Família, A Legião Estrangeira, A Via Crucis do Corpo; crônicas para o Jornal do Brasil e literatura infantil. Examino suas fotos: uma mulher bonita, sempre elegante, os olhos oblíquos contornados de preto. Há nela um exotismo e uma expressão enigmática.
Em 1967, um acidente transformou a personalidade da escritora: ela teve as mãos e as pernas queimadas num incêndio, provocado pelo cigarro aceso, enquanto dormia. Dizem que escrevia fumando, com uma rosa vermelha ao lado do caderno e da máquina de escrever. A mão direita ficou deformada e com cicatrizes, tolhendo seus gestos e sua assinatura. Deprimida, recusava convites e homenagens, iniciando um processo de recolhimento doméstico, só abrandado pelas visitas de amigos e pela popularidade que crescia. Nessa mesma década foi acusada de “alienada”, pois se recusava ao engajamento político.
Separada do marido, Clarice conhece Olga Borelli, amiga e secretária nos seus últimos anos de vida, quando já lutava contra um câncer. Vão juntas em 1976 a um estranho Congresso de Bruxaria na Colômbia, para o qual Clarice levou um de seus contos: “O Ovo e a Galinha”. Isso criou um clima e questionamentos: seria ela uma bruxa? Uma maga? Uma escritora ligada ao ocultismo? Ou uma simples curiosa pelo lado sombrio da busca espiritual?
Olga datilografava os originais, organizava trechos, que Clarice colocava em envelopes, recebia as pessoas e esteve com ela no hospital até o suspiro derradeiro. Clarice, agonizante, declarou: “Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste fim de ano exausta.”
E não é que lá pelo ano 2000, quando eu cursava o mestrado em São Paulo, fui parar na casa do Olga Borelli? Ela havia criado o Espaço CENA, Centro de Encontro das Artes, que ficava na rua Ibiaté, no bairro do Itaim Bibi. No quintal foi armado uma espécie de tenda, auditório com cadeiras, um palco, material de som. Olga nos recebeu numa noite fria, a mim e a outros poetas como Celso de Alencar, com um sorriso afável, apresentando-nos aquela conquista: um lugar para a cena artística, para música, teatro, dança, diálogos. Na oportunidade eu disse que era do Mato Grosso do Sul e li os poemas de meu livro Guerra entre Irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai, um dos principais fatos históricos de minha região.
Olhando os cabelos grisalhos de Olga, imaginei seu sofrimento acompanhando o duro isolamento de Clarice. Em janeiro de 1977, surpreendentemente, a escritora compareceu à TV Cultura, em São Paulo, para participar de uma entrevista. Nesse dia, concedeu depoimento ao jornalista Júlio Lerner, que depois foi reproduzido na revista Shalom (1992). Nessa entrevista, com voz rouca e abafada, falou sobre seu romance A Hora da Estrela: “Morei no Recife, me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem uma feira dos nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. Daí começou a nascer a ideia. Depois fui a uma cartomante e imaginei... que seria muito engraçado se um táxi me pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter ouvido todas essas coisas boas. Então daí foi nascendo também a trama da história.”
Segundo nos explica a Professora Márcia Lígia Guidin, no seu Roteiro de Leitura da obra, o autor-narrador da novela A Hora da Estrela se chama Rodrigo S.M. e inicia a obra com um apelo ao leitor: pede a ele que desculpe uma história tão simples. Justifica a pobreza narrativa por causa das próprias dúvidas em relação à vida e à literatura. Seus comentários sobre o estilo, sobre a personagem e sobre si mesmo percorrem toda a obra e se revelam por entre a história de Macabéa, moça humilde e ignorante, “uma incompetente para a vida.” Conhece Olímpico de Jesus, um metalúrgico paraibano. Os namorados encontravam-se em bancos de praça. Macabéa estava apaixonada. Olímpico conhece Glória, colega de escritório de Macabéa. Branca, quadris largos, cabelos pintados de louro. Olímpico rompe o namoro e passa a sair com Glória. Macabéa volta à solidão e ao alheamento. Macabéa vai ao médico, que a avisa que ela está com tuberculose. Glória sugere a Macabéa que procure uma cartomante, Madame Carlota, prostituta e cafetina. Madame recebe Macabéa com carinho. Carlota vê nas cartas um passado triste, um presente horrível e um futuro com grandes predições: um marido rico e estrangeiro. Macabéa sai aturdida e espantada. Enlouquecida de esperança. Ao atravessar a rua, entretanto, um automóvel Mercedes-Benz a atropela. Batera com a cabeça na calçada e sangrava. Começava a garoar e algumas pessoas espiavam a moça agonizante. Em seu delírio, vendo o carro de luxo, pensa que as profecias estão sendo cumpridas. Encolhe-se como um feto. Sua agonia se mistura a certa sensualidade feminina. Morte e erotismo se encontram. Macabéa morre esmagada pelo mundo urbano que não conquistou.
Olímpico, Glória e Carlota revelam um traço comum: são todos personagens que, por contraste à incapacidade verbal da moça, possuem uma superioridade discursiva que viabiliza sua integração na cultura urbana. Entre outras coisas, para sobreviver é preciso falar, pensar, discursar, prometer. Macabéa, silenciosa ou boquiaberta, fica subjugada a todos eles.
Para as personagens antecessoras de Macabéa, a aquisição intelectual, bem como a constituição de família, não são pontos de contato satisfatórios com o mundo. A cultura urbana, com seus reflexos, é um fardo que afasta a mulher de uma vida primitiva e simples e a arrasta a uma introspecção problemática e agônica. Diante da vida familiar e social, diante de si mesma, a mulher sofre um processo de perda de identidade. Em todos os casos, as personagens, casadas, solteiras, mães, avós, pintoras, professoras, são figuras expostas ao fracasso e à frustração. A Hora da Estrela transformou-se num filme fascinante de 1985, que ganhou vários prêmios, dentre eles o Urso de Prata do Festival de Berlim, com roteiro e direção de Suzana Amaral e com a atriz Marcélia Cartaxo no papel de Macabéa.
Depois de ler o livro e assistir ao filme, escrevi este poema, “Esperança”:
Estou grávida de futuro,
Como alguém que vai à cartomante
E ouve tudo que deseja.
A esperança tomou conta de mim
Em ondas verdes,
Diante de mar tão amplo,
Desmaio de sede.
Esperança violenta,
Se eu fosse virgem,
De repente teria me tornado mulher,
Noiva que cai nos braços da morte.
Esperança de transpor a porta do céu,
Tão estreita,
Tão fechada
Por gonzos de prata.
Esperança de ser quem sou:
Semente de mostarda
Que virou árvore,
Embora tarde.
Sobre o abismo,
Essa ponte,
Esse pilar,
Esse poder,
Caminho
E espero.
Neste ano que marca o centenário de nascimento de Clarice Lispector, reflito sobre o quanto ela representou para mim: descobri-la lá atrás, na minha juventude, alimentou o meu sonho de ser uma escritora inspirada e inspiradora. Colocou-me numa corrente cujos elos se multiplicam por gerações de leitores fascinados por seus textos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Coleção Literatura Brasileira Contemporânea, vol. 21. Livraria José Olympio Editora; Editora Civilização Brasileira e Editora Três, 1974.
A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.
GOTLIB, Nádia B. Clarice-uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de Leitura: A Hora da Estrela de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1996.