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  • Fonte: Raquel Naveira
O IMPRESSIONISMO EM CRÔNICA INTITULADA MÚMIA, DE RAQUEL NAVEIRA - ( A crônica "Múmia" está publicada no final do ensaio )

Assim é a lei de Deus: pode assumir o aspecto e a cor do
instante em que é citada. Dubiedade, transigência? Não é que
a verdade tem de cingir todos os aspectos da contingência
humana. Que nos adianta ela quando abraça um único
aspecto das coisas e digna apenas uma face,
que muitas vezes esconde a verdadeira essência dos fatos?
Repito, a lei de Deus é mutável e vária exatamente porque
tem a candidez, a austeridade e a fluência do líquido:
penetra e umedece, e torna viva e fecunda a terra que
antes não produzia senão a folhagem seca da m
orte.

Lúcio Cardoso, autor de Maleita (1934) e Salgueiro (1935)

Por Enilda Mougenot Pires – da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras

Para o filósofo literário Tzvetan Todorov - referência do pensamento moderno contemporâneo europeu com Introdução à Literatura Fantástica, publicada em 1970 -, “a função da literatura é criar, partindo do material bruto da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelos olhos do vulgo”. E enfatiza que criar um mundo verdadeiro implica que “a arte não rompe sua relação com o mundo”.

ilustra 1 raquel abaceIlustração 1 - Múmias são mortos-vivos ligados por um ritual macabro a algo em vida, geralmente seus tesouros. De tempos em tempos, as múmias precisam descansar em seus sarcófagos por um período de treze luas. Foto: reprodução/Learn MoreP ara Raquel Naveira, autora de inúmeras obras e pertencente à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, a experiência de transmutar a realidade é como criar uma imagem a partir de uma reinterpretação, de uma revisão de que retira o máximo de capacidade criativa de uma transcrição sensorial –, particularmente, o que é da ordem do sentimento, da impressão, das vibrações. E, como explica o escritor Raul Pompeia, “ a arte reproduz vibrações, e vibrar é viver.” E o poeta tudo cria: as pessoas, as situações e os sentimentos improváveis. Pode-se considerar que ser uma múmia é um contraponto subjetivo à liberdade; surge ao exprimir o que o poeta português Fernando Pessoa experimenta nos versos a seguir: “Na alma meu corpo pesa-me./Sinto-me um reposteiro/Pendurado na sala/Onde jaz alguém morto.//Qualquer coisa caiu/e tiniu no infinito”. Por que se anda nas sombras dentro do que se pensa?

Essa transmutação elaborada por faculdades inventivas e virtuosidades de seu estilo oferece a crônica intitulada Múmia, publicada nas páginas da Academia Cristã de Letras. Com quatro parágrafos, está inserida no conceito do Impressionismo literário. Nesse sentido, revisitam-se conceitos importantes de tal conceito ao integrar à análise do texto individual o papel mais amplo dessa estética com a qual a escritora dialoga.

Sendo assim, há descrições sensoriais dentre as quais a linguagem plástico-visual é predominante. Reproduz-se a impressão visual do instante com as impressões subjetivas provocadas pela sensação. Por isso, em todo o eixo temático, figura um estado mental de movimentos sensíveisilustra 2 raquel 21410 evocatórios frente à visão artística impressionista. Outro aspecto interessante nesse texto é o relevo da impressão. Cita-se este exemplo: “Dentro da pirâmide úmida cercaram-me de joias, escaravelhos, amuletos e carros de guerra”.

Ilustração 2 – Foto: reprodução/Andrew Ostrovsky

Assim o Impressionismo pela literatura oferece “uma concepção nova da realidade; tudo o que vive se transforma; e se se quiser restituir a vida em sua verdade, é indispensável analisá-la. Exprimi-la no que suas manifestações denotam de fugaz, de efêmero e transitório”, explica o filósofo Guillaume Raynal.

A transposição da arte de pintar, ao domínio de outra arte, que é a arte de escrever, serve de moldura à narrativa central. Tudo tem início com o relato emocionado, nevrálgico das impressões marcantes de o narrador em primeira pessoa sentir-se uma múmia: “ É assim que me sinto: como uma múmia”. O termo que faz ligação entre a passagem da vida anterior do protagonista à nova é o de impressão, cuja ênfase recai na evolução visual, textualmente, citada no seguinte trecho: “Retiraram com garras afiadas o meu coração, fígado, rins, vísceras e colocaram num cofre de madeira dourada. O cérebro foi derretido pelo ácido. Meu corpo mergulhado em água e sal, peixe desidratado”. É possível considerar essa ficcionalidade de Raquel Naveira em conceito de Oswald de Andrade, publicado no artigo A exposição Anita Malfatti (1918): “Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram”.

Outro trecho apoiado unicamente na memória de suas impressões segue demandando maior estranhamento do leitor: “ Preencheram a cavidade com serragem, ervas aromáticas e folhas de meus livros de poemas”. A impressionabilidade ainda é assinalada por mais uma sequência ininterrupta descritiva: “Enfaixaram-me com ataduras de linho branco e cola dura. Colocaram-me num sarcófago, um relicário, o rosto coberto por uma máscara”.

Tal como uma máquina fotográfica, o narrador em seu estado febril sugere um elemento fantástico surpreendente que desperta sensações estranhas no leitor. Isso é explorado a seguir: “Dentro da pirâmide úmida cercaram-me de joias, escaravelhos, amuletos e carros de guerra”. É quando desaparecem os limites da recepção dos olhos que tudo viam e se abrem a um acontecimento sobrenatural: “O tempo perdeu seu sentido, quando vislumbrei os milhões de anos da eternidade”.

Trata-se, ao que tudo demonstra, do vislumbre particular do que há de subjetivo não apenas na representação do real, mas a do que há de real, do que se vê na sensação, mediante a ponte que vai do olhar interno (e de seus efeitos fantásticos) às correlações entre imagem e palavra. A sucessão de imagens escraviza o narrador, que não consegue acompanhar a velocidade das impressões, pois como cadáver “do vale onde o sol se põe” falta-lhe o ar como confessa: “Faltou-me oxigênio”. Ele sente a fadiga perturbadora do fantasma da morte.

Sua frágil autoconsciência é mediada pelo “vento seco de todas as fúrias” que apresenta, como desfecho, o grito de socorro ao ente de fumaça e de fogo: ” Laços de morte me cingiram, torrentes de impiedade me arrastaram, mas, na angústia, invoco socorro e justiça”. O tom das palavras e do discurso faz lembrar “ o grito humano, o doloroso grito/Que um vento estranho para os limbos leva” do poeta Cruz e Souza.

Nesse sentido, não é exagero fazer uma leitura do impressionismo literário nesse momento do texto, pois se fundem os órgãos dos sentidos num conjunto contínuo e líquido – audição, tato e visão.

Raquel Naveira e o escritor Lúcio Cardoso sabem que o para sempre é o “existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis. Para vencer esse contingenciamento, é preciso “libertar-se das amarras”. Trata-se de uma inegável visão sobre o homemem luta consigo mesmo, contra o outro e contra a natureza.

ilustra 3 raquel 4f3d1Ilustração 3 – Foto: reprodução/Marcelo Coelho

Múmia não é uma transcrição, mas uma construção na qual a vida e a morte são fenômenos que devem ser observados, analisados e, consequentemente, apreciados em suas causas. Não se estranha, pois, que se questione sobre a verdade do outro: “Quiseram, a qualquer custo, desviar-me da verdade, minar meus sonhos e pensamentos, arrastar-me ao túmulo do chacal”. Nesse sentido, Naveira é exemplar. Quer dizer: para o Impressionismo, nada é absoluto; ao contrário, procura interpretar a realidade, considerando-a como valor relativo. Como um caleidoscópio, a trama desfaz todos os seus ângulos quando um ser superior ouve a voz de socorro e consome aqueles que mal lhe fizeram: “Ele então ouviu a minha voz, do seu nariz saiu fumaça, da sua boca o fogo que consumiu aqueles que me perseguiram”.

No que se refere à descrição impressionista, a crônica caracteriza o aspecto, acima de tudo visual, plástico, sensorial de uma transformação completa. É ilustrativo todo o primeiro parágrafo. Dessa maneira, é por meio das impressões (especialmente as visuais que duram nesse ser lacerado) que o personagem-narrador tem de si mesmo e de um personagem sobrenatural, que o leitor tomará conhecimento da história em Múmia.

Contudo, essas impressões nem para sempre foram de corpo desprovido de vida – e o contraste entre os dois primeiros parágrafos e o que virá a seguir é o que motiva o leitor a prosseguir lendo seu instigante receptáculo de memória, expresso por meio de dois tempos verbais: o presente e o passado. Este em: “Saí correndo pelo mundo, soltando com as mãos os laços que me envolveram, os nós com que me apertaram; armadilhas de engano (...)”. O ritmo duplo desses tempos – presente e pretérito perfeito – constrói, com palavras, uma imagem de personagem para si, baseada na metamorfose, ou seja, na mudança relativamente rápida de forma, estrutura e hábitos - uma transmutação humana sobrenatural.

É como se o narrador-testemunha dissesse: “Para mim mesmo, sou anônimo”. O tempo verbal dessa reflexão é o presente: “É assim que me sinto: como uma múmia”. Assim também se estrutura o final do texto, quando o narrador fecha com ” Que força tremenda é libertar-se das amarras. Atravessar em carne viva um novo portal”. Ocasião em que convida o leitor à reflexão na qual se questionará se o sobrenatural existe ou é fruto apenas de uma mente imaginativa? Afinal, retornar e morrer tão rapidamente não é fácil de entender! Talvez porque a realidade não possa ser admitida.

Por fim, o desenvolvimento dessa crônica narrada em primeira pessoa assemelha-se ao trabalho de uma pintura. Isso se faz a partir do olhar do artista que sugere ou ordena uma imagem que se concretiza como um desenho, característica que ajuda a fazer de Múmia um texto impressionista.

Projetar um protagonista que não fala em nenhum momento, não é um processo de produção simples. Contudo, contribui muito para a área dos estudos literários, além de proporcionar uma ótima leitura aos apaixonados de literatura.

MÚMIA

Raquel Naveira

É assim que me sinto: como uma múmia. Retiraram com garras afiadas o meu coração, fígado, rins, vísceras e colocaram num cofre de madeira dourada. O cérebro foi derretido pelo ácido. Meu corpo mergulhado em água e sal, peixe desidratado. Preencheram a cavidade com serragem, ervas aromáticas e folhas dos meus livros de poemas. Enfaixaram-me com ataduras de linho branco e cola dura. Colocaram-me num sarcófago, um relicário, o rosto coberto por uma máscara. Dentro da pirâmide úmida cercaram-me de joias, escaravelhos, amuletos e carros de guerra. O tempo perdeu seu sentido, quando vislumbrei os milhões e milhões de anos da eternidade.

Quiseram me tornar mais um cadáver do vale, onde o sol se põe. Faltou-me oxigênio. Soprou sobre mim o vento seco de todas as fúrias. Foi aí que gritei: “_ Laços de morte me cingiram, torrentes de impiedade me arrastaram, mas, na angústia, invoco socorro e justiça.” Ele então ouviu a minha voz, do seu nariz saiu fumaça, da sua boca o fogo que consumiu aqueles que me perseguiram.

Saí correndo pelo mundo, soltando com as mãos os laços que me envolveram, os nós com que me apertaram: armadilhas de engano, notícias de peste, imagens chocantes, cartões de crédito, propagandas luminosas. Toda sorte de ansiedade e desespero. Quiseram, a qualquer custo, desviar-me da verdade, minar meus sonhos e pensamentos, arrastar-me ao túmulo do chacal.

Que força tremenda é libertar-se das amarras. Atravessar em carne viva um novo portal.