Slide
  • Fonte: Helio Begliomini

Avôs, Avós e Meus Segundos Pais1 

Não tenho dúvida que sou um ser privilegiado em muitos aspectos. Dentre inúmeras benesses recebidas, pelas quais não me canso de agradecer a Deus, foi, não somente ter tido os pais, irmãos e os familiares que tive, mas, principalmente, a união e o bem-querer que sempre permeou nosso relacionamento.

A propósito, numa época em que se desdenha o casamento; que se relativizam a moral e os bons costumes; que se divorcia com extrema facilidade; que se ajuntam e se desarticulam relacionamentos como se assentam e se desmontam acampamentos; que se descartam filhos e pais como se troca de roupas, torna-se difícil aos muitos jovens de hoje compreender o tesouro que era a família e familiares de poucas décadas atrás. Ademais, em tempos quando os adultos protelam ao máximo para ter filhos, caso os tenham – e se os tiverem com a mais absoluta parcimônia, subentendendo que prole não é mais como outrora, uma bênção de Deus, mas estorvo, trabalho e fardo –, torna-se cada vez mais raro conhecer avós e avôs e deles guardar momentos de grande enternecimento.

Afortunadamente tive a regalia de ter excelente convivência com muitos familiares, tanto da parte da minha mãe quanto do meu pai; de conhecer não somente todos os meus avôs e avós, mas também meu bisavô paterno: Orestes Gavazzi, casado em primeiras núpcias com Sestilha Gavazzi – que não conheci e, em segundas núpcias já na idade madura, com Francisca (“Chiquinha”) Gavazzi. Guardo deles uma terna lembrança. Moraram por um bom tempo na cidade de Bom Jesus dos Perdões (SP), adiante de Atibaia. Por diversas vezes, quando criança, meus pais e avôs paternos iam visitá-los aos domingos. Em sua modesta residência havia uma parreira, e era um encanto ver os cachos repletos de uvas e saboreá-las. Eram simples, cordiais e alegres.

Orestes Gavazzi teve seis filhos no primeiro casamento: Norina, Aladino, Rino, exímio jogador de Damas; Fernando, tio “Fiori”, cujo filho Aldo tinha um belíssimo trenzinho importado, que me alegrava muito quando íamos visitá-los em sua residência no Jabaquara; Delfina, simpaticíssima e muito gentil; e Mário, o caçula, que ficou solteiro, paradoxalmente, o primeiro que faleceu (Figuras 1 e 2).

Minha avó Norina era da Toscana e veio da Itália com cinco anos. Quando eu era criança a esperava ansiosamente no portão de minha casa para que ela me levasse, semanalmente, a passear no trem do Tremembé, que tinha como locomotiva uma maria-fumaça. Percorremos juntos, inúmeras vezes, essa linha, quer indo ao terminal de Santana, quer ao da Serra da Cantareira. Ela fazia pratos apetitosos e sempre ajudava meu pai e meu tio na loja de eletrodomésticos que eles tiveram, situada à frente de sua residência, havendo comunicação interna entre ambas. Por falar ou cantar amiúde músicas do folclore italiano, muito do pouco que sei desse idioma devo a ela. Já havia muitos anos viúva, passeava sozinha no bairro do Tremembé e era conhecida por muitos. Rotineiramente, vinha me fazer visitas no Instituto de Medicina Humanae Vitae – Imuvi, onde tenho consultório e sou diretor clínico. Era lépida e esperta. Tive o privilégio de tê-la comigo por 48 anos (!), vindo a morrer em 29 de dezembro de 2003, com 95 anos e meio. Ela conservou-se saudável e lúcida até seus últimos dias, adoecendo 15 dias antes de falecer.

 1 d8d0f

Figura 1 – Da esquerda para a direita: Bisavô Orestes, avô Antonio, tio Benigno, irmão de meu pai, e, à sua frente, Roberto, seu filho mais velho e meu primo; tio-avô Armando, casado com Delfina, irmã de vinha avó; e Mario, irmão de minha avó Norina junto com Pedro, meu irmão. Ao fundo, a Igreja de São Pedro Apóstolo no bairro do Tremembé.

 2 4fe05

Figura 2 – Da esquerda para a direita, em pé: Bisavó “Chiquinha”; tia Neide, casada com tio Benigno, irmão de meu pai; avó Norina, Iolanda e seus pais à sua direita – Delfina e Armando; avô Antonio e bisavô Orestes.
Agachados: Alfio, meu pai, com seus dois filhos: Helio e Pedro; e Mario, irmão da avó Norina.

Minha avó Norina foi casada com Antonio Begliomini, bem mais velho que ela. Tiveram dois filhos: Alfio e Benigno, com diferença de seis anos um do outro. Meu avô, coincidentemente, era também da Toscana. Deixou pais e irmãos e veio sozinho, em sua juventude, aventurar-se no Brasil a fim de buscar novos horizontes. Chegou a ter um bar no bairro da Barra Funda (Figuras 3 e 4). Em seguida, numa época em que se tinha um conceito primitivo de energia, ele teve por muitos anos um estabelecimento que comercializava lenha e carvão, situado no bairro do Bom Retiro. Posteriormente, ele, minha avó e seus dois filhos, transferiram-se para o bairro do Tremembé (Figura 5), por volta de 1940, ocasião em que meu pai tinha uns 13 anos.

3 4eb2b
Figuras 3 e 4 – Na foto da esquerda meu avô Antonio; avó Norina e seu filho Alfio, em pé no balcão do bar que teve na Barra Funda.
Na foto da direita minha avó Norina e avô Antonio com o primeiro filho ainda bebê, Alfio.

Figura 5 – Minha avó Norina e meu avô Antonio na casa do bairro do Tremembé, onde os conheci. Ao fundo visualiza-se parte da Serra da Cantareira.

Meu avô Antonio era magérrimo e tabagista inveterado (Figuras 6 a 8). Fumava cigarros da marca Fulgor, sem filtros e com grande teor de nicotina. Certa feita, no início de minha adolescência, escondido no banheiro da casa dele, fumei seguidamente dois ou três de seus cigarros. Tive grande mal-estar com náuseas e muita tontura. “Feliz” experiência! Foi a minha salvação, pois prometi a mim mesmo que jamais voltaria a colocar um cigarro em minha boca.

4 53b64 

6 fef18 

Figuras 6 a 8 – À esquerda: Avó Norina, avô Antonio, eu e o Julinho, um amigo de infância. À direita, meus avôs paternos e eu, em frente da casa onde morei, à Rua Manoel Moraes Pontes. Em baixo, avó Norina no Natal de 1979.

Avô Antonio, como bom italiano, bebia sempre vinho em suas refeições, que comprava em barricas e as conservava no térreo de sua modesta residência. Gostava de falar em italiano e comer pão, que embebia num copo de vinho. Quando o conheci não tinha dentes. Era proprietário de um carro Ford muito antigo, que chamava carinhosamente de “baratinha” (Figura 9). Tinha apenas um assento à frente onde cabiam duas pessoas, e um bagageiro. Diversas vezes, quando criança, andei no bagageiro da “baratinha”, a fim de ajudar a entregar materiais e presentes que eram comprados na “Loja Begliomini”, estabelecimento comercial do meu pai e do meu tio.
Meu avô Antonio era austero e, diferentemente, de minha avó Norina, tinha pouca paciência com todos. Ele faleceu num Dia das Mães, em 12 de maio de 1973, de complicação de uma cirurgia urológica (prostática), curiosamente, especialidade que abraçaria após minha graduação. Quando ele morreu eu estava no primeiro ano do curso de medicina e tinha 18 anos.

7 64579 

Figura 9 – Ford do meu avô Antonio (“baratinha”), no qual andei por muitas vezes na frente e no bagageiro, ajudando meu tio Benigno (à direita da foto) a fazer entregas da loja que teve com meu pai.


Da mesma forma, tive contato similar com meu avô materno, que também morava no bairro do Tremembé. Luiz Iusi era filho de Michele e de Francisca Iusi, ambos igualmente italianos e oriundos da Calábria2 (Figura 10). Meu avô Luiz trabalhou muitos anos como lenhador; depois como tijoleiro e também numa pedreira em épocas que não presenciei. Além de obeso, sofria do coração. Apresentava edemas (inchaços) em seus membros inferiores e não podia fazer grandes esforços devido à falta de ar. Também tinha pouca paciência e vez por outra falava uns pensamentos no dialeto de seus pais. Faleceu um ano depois de meu avô Antonio, em 9 de abril 1974, com quase 74 anos, ocasião em que eu tinha 19 anos.

8 f1e6e
Figura 10 – Pais e irmãos de meu avô materno Luiz Iusi. Da esquerda para a direita: Pedro (sentado), José, Francisca (mãe), Michele (pai), Luiz, Maria e Rosa. Foto gentilmente fornecida por minha tia, Terezinha de Jesus Iusi Machado.

Meu avô Luiz Iusi foi casado com Clarinda Pardini, minha avó materna, que teve como pais Giuseppe Pardini3, conhecido pelos netos como avô “Pepino”, e Catarina de Lucca Pardini, ambos também calabreses (Figuras 11 a 14)4. Minha mãe tinha cinco anos quando sua avó Catarina faleceu. Luís e Clarinda Iusi (Figuras 15 a 18) tiveram nove filhos: Adélia, Miguel, Iracema (“Cema”), Amélia, José (“Zezinho” faleceu com 2,5 anos), Olga (minha mãe), Tereza (faleceu com sete meses), Terezinha de Jesus e Maria (“Mariú”).
Como curiosidade deve-se citar que Catarina Lucca Pardini só teve uma filha biológica chamada Clarinda; contudo, teve outra filha de criação chamada Adélia Stumpo. Ademais, era tia de Júlio de Lucca, e ambos serão citados à frente.

9 76541
Figuras 11 e 12 – Catarina Iusi Pardini e Giuseppe Pardini (avô “Pepino”). A foto da esquerda foi gentilmente fornecida pela minha tia Terezinha de Jesus Iusi Machado, e a da direita pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues.

10 fbc7e
Figuras 13 e 14 – Catarina Iusi Pardini e Giuseppe Pardini (avô “Pepino”). Fotos gentilmente fornecidas pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues.

11 e046c

12 b4f02

Figuras 15 e 16 – À esquerda, casamento de Clarinda Pardini e Luiz Iusi, meus avôs maternos. À direita, Luiz Iusi quando jovem, foto esta gentilmente fornecida pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues.

 13 2bc66

Figura 17 – Luiz Iusi, Clarinda com Ana Maria, minha prima, no colo, por ocasião de seu primeiro aniversário, e, à direita, Olga, minha mãe. Foto gentilmente fornecida pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues.

 14 7c6bb

Figura 18 – Da esquerda para a direita, Alfio, meu pai; Luiz e Antonio, respectivamente meus avós materno e paterno. Foto gentilmente fornecida pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues.

A avó Clarinda gostava de festas, era modesta, agradável e muito participativa. Tinha prazer em reunir os familiares no quintal de sua casa, particularmente ao redor de uma fogueira, por ocasião da festa junina de São Pedro, visto que aniversariava um dia antes, em 28 de junho. Com o avançar da idade não escutava bem, mas conservou-se muito alegre, esboçando sempre um largo sorriso. Tinha um grande carinho pela sua irmã de criação “Nela”, mais velha (Figuras 19 e 20), que será mencionada à frente. Semanalmente, apesar da idade avançada, deslocava-se a pé para visitá-la em sua residência (Figura 21). Faleceu em 20 de agosto de 1991, com 85 anos, época em que eu tinha 36 anos.

15 96783
Figura 19 e 20 – Avó Clarinda no batizado da Giovanna, minha filha, em 1988.

 16 cd4df

Figura 21 – As irmãs, avó Clarinda e tia “Nela”, num dos múltiplos encontros semanais que tiveram em idade provecta.


Gostaria de recordar com grande saudade um casal, igualmente caríssimo à minha vida e formação, que, curiosamente, teve uma afinidade biológica parcial como todos os parentes maternos já relatados acima, mas, sobretudo, uma grandiosíssima afinidade sentimental. Na verdade, pela idade e pela inserção familiar, foram meus tios-avôs maternos, e os chamava simplesmente de tio ou tia, mas que foram, na prática, carinhosamente considerados como meus segundos pais: Júlio e Adélia, esta conhecida por todos como tia “Nela”, e para alguns mais íntimos como “Nenela” (Figuras 22 a 24).

17 313f3
Figuras 22 a 24 – À esquerda, Adélia (tia “Nela”) e Júlio, meus segundos pais, nos primeiros anos de casamento – foto gentilmente fornecida pela minha tia Terezinha de Jesus Iusi Machado. Ao centro, provavelmente nos anos de 1950 – foto gentilmente fornecida pela minha mãe, Olga Begliomini; e, à direita, eu com eles possivelmente em 1978. A foto da direita é do meu acervo.

Júlio de Lucca era o nome dele. Nascido em Franca (SP) e de família humilde, teve outros três irmãos: Pascoal, Augusto e Sofia, tendo eu vaga lembrança dos dois últimos. Não conheci seus pais, mas chamavam-se Silvério e Massimina. Silvério, curiosamente, era irmão de minha bisavó materna Catarina Lucca Pardini.
Tio Júlio atuou como vendedor ambulante e por final teve um armazém no bairro do Tremembé. Acordava cedo e era muito trabalhador, mesmo em idade avançada. Quando meu pai, ainda jovem e noivo de minha mãe, ficou desempregado, foi trabalhar com ele no armazém e o fez por cerca de uns dois anos (Figura 25). Tio Júlio também deu emprego para outros irmãos de minha mãe: Miguel e Amélia no armazém, e Adélia em sua residência (Figuras 26 e 27).

 18 ea280

Figura 25 – Alfio, meu pai, em pé à direta, junto da charrete (“Aranha”) do armazém de meu Júlio.

 19 58ec7

Figura 26 – Em frente ao armazém do meu tio Júlio, as filhas de meus avôs Luiz e Clarinda: Da esquerda para a direita: Adélia, Guiomar (amiga e ajudante não familiar); e, na charrete, também chamada “Aranha”: Olga, minha mãe; Amélia com Tereza no colo, e a tia “Nela”.

 20 5947a

Figura 27 – Em frente à casa da minha tia “Nela”. Da esquerda para a direita, filhas e filho de meus avôs Luiz e Clarinda: Adélia, tia “Nela”, Guiomar (amiga e ajudante não familiar); Iracema (“Cema”) e Miguel, sentado em frente ao portão.
À frente: Olga, minha mãe; Tereza e Amélia com Maria (“Mariú”) no colo.

Por uma ironia do destino, após cerca de três décadas, meu pai necessitou de alguém de confiança para gerenciar a loja de ferragens e eletrodomésticos que tinha em sociedade com seu irmão (“Loja Begliomini”). Nessa ocasião, meu tio Júlio já era sexagenário. Aposentado, vivia do aluguel de seu armazém. Não teve dúvida em voltar a ajudar meu pai. Retornou à rotina de trabalho sistemático, fazendo-o com grande disposição por mais de dez anos!
Esperto, gostava de percorrer semanalmente, a pé, diversos supermercados da circunvizinhança, a fim de obter os mais vantajosos preços do que pretendia comprar.
Eu passava em sua casa durante a semana e era praxe ficar lá horas, no sábado à tarde, além do inesquecível almoço familiar de domingo. Ele mesmo fazia a massa com ovos frescos e fabricava o macarrão talharim na véspera, o qual era servido com um suculento molho encorpado de tomates feito pela minha mãe. Esse prato era antecedido por acepipes compostos de azeitonas, minipastéis ou porpetas; berinjela finamente fatiada e curtida no azeite com alho, outra especialidade dele; além do pão italiano que ele fazia questão de ir comprar com meu pai, no bairro do Bixiga, todos os domingos pela manhã. O almoço era complementado com salada, frango assado, carne cozida ou bracholas, além da sobremesa e um delicioso cafezinho coado em filtro de pano.
Quando criança eu era fascinado por trenzinhos elétricos. Além de ele ter-me presenteado com o primeiro trenzinho que tive, levava rotineiramente, sem reclamar, a locomotiva e outras peças para conserto no centro da cidade. Ademais, foram inúmeras as noites que, após assistir televisão em sua casa, fingia estar dormindo, só para que ele me levasse em seus braços até a minha residência contígua à dele. Conservo com muito carinho, em meu dedo anular, a aliança de ouro de casamento com que ele e minha tia “Nela” presentearam a mim e à minha esposa.

A história de minha tia “Nela” ou, para alguns mais íntimos, “Nenela”, daria para fazer um belo romance e, sem dúvida alguma, se transformada em filme, teria chances de alcançar uma grande bilheteria.
Ela nasceu em Campinas. Ainda muito pequena, com cerca de uns quatro meses de vida, sua mãe Cândida, igualmente imigrante italiana e com outro filho mais velho, fora abandonada pelo marido. Necessitando trabalhar, confiou a amamentação e o cuidado provisório de minha tia “Nela” à sua amiga italiana Catarina Lucca Pardini, coincidentemente, avó materna de Olga, minha mãe.
Minha avó Clarinda, filha legítima e única de Catarina, gerada após uma série de abortos espontâneos (mais de dez), viria a nascer somente cinco anos depois que Adélia (“Nela”) estava morando com Catarina e seu esposo Giuseppe (avô “Pepino”). Embora minha avó Clarinda não tivesse o mesmo sangue que o seu, sempre a considerou sua irmã, e o inverso também era verdadeiro.
Minha tia “Nela” teve como irmão mais velho do mesmo pai, Armando, e, posteriormente, só por parte da mãe, Nicola e José.
Os anos foram passando. Cândida e Armando iam amiúde à escola onde “Nela” estudava e insistentemente a procuram ofertando-lhe doces para que voltasse a residir com eles. Contudo, ela, já acostumada com Catarina e Giuseppe, jamais aceitou essa ideia, pois considerava sua verdadeira família a de seus pais adotivos. Aliás, tia “Nela” não teve como sobrenome Pardini de seus pais adotivos, mas Stumpo, nome de seu pai biológico que nunca conheceu.
Assim, Catarina, de provisória ama-de-leite, passou a ser a mãe de fato de minha tia “Nela”. Entretanto, apesar disso, ela nunca deixou de manter contato com sua mãe biológica e seus irmãos.
Conheci, quando criança, vagamente o Armando, que faleceria, já idoso, de infarto do miocárdio, dentro de um avião quando viajava para a Itália. Por sua vez, tenho nítidas lembranças da esposa do Armando, chamada Itália, que visitava vez por outra minha tia “Nela” e tio Júlio. Itália era uma mulher fina e vaidosa. Tinha esmerada educação e trajava-se muito bem, contrastando com a simplicidade e a modéstia em que viviam meus tios.
Tenho também gratas recordações do outro irmão de minha tia “Nela”, chamado Nicola. Ele tinha óculos de espessas lentes escuras, que escondiam parcialmente suas grossas e longas sobrancelhas. Sua esposa chamava-se Ana e era esmerada artista plástica. Confeccionava flores que imitavam impecavelmente a natureza. Tiveram dois filhos: Duílio e Dalva, esta casada com o Luigi. Todos moravam na Vila Mariana, mas visitavam meus tios de três a cinco vezes por ano.
Tia “Nela” tinha uma tia chamada Antonieta, irmã de sua mãe, que lhe havia presenteado com um belíssimo conjunto de louça inglês, anos mais tarde doado a mim e à minha esposa, verdadeira relíquia que hoje tem mais de cem anos!
Minha mãe começou a frequentar muito cedo a casa de minha tia “Nela”. Em decorrência do número excessivo de filhos de meus avôs Luiz e Clarinda; da dificuldade financeira que tinham; da proximidade de suas residências; da ausência de filhos de meus tios Júlio e “Nela”, assim como pela empatia de ambas as partes, minha mãe acabou ficando definitivamente na casa deles por volta dos sete anos, ao ingressar na escola. Assim, minha mãe adotou-os como segundos pais, deixando-os apenas para se casar, aos dezoito anos (Figura 28).

 21 4c4c9

Figura 28 – Passeios frequentes que fazíamos aos finais de semana com meus tios e avôs: Da esquerda para a direita: Avô Antonio, tio Júlio, minha mãe grávida de minha irmã Silvana; eu e parcialmente visível meu irmão Pedro.

Uma vez casada, meus tios deram um terreno contíguo à casa deles, voltado para a Rua Manoel Morais Pontes. Lá meu pai construiu um sobrado e moraram por aproximadamente 12 anos, onde viveram com seus três filhos. Quando saíram de lá para a residência na Rua Bias eu tinha uns dez anos; meu irmão Pedro uns oito, e minha irmã Silvana uns três meses.
Da mesma forma como aconteceu com minha mãe, tive grande empatia pelos meus tios Júlio e “Nela” (Figuras 29 e 30). Desde muito cedo frequentava a casa deles como se fosse a minha, e eles tinham grande prazer em receber tanto a mim quanto aos meus irmãos Pedro e Silvana. Aliás, inúmeras vezes ao chegar da escola, eu passava por primeiro na casa deles e depois me dirigia à minha casa. Eram simples, modestos e jamais desperdiçavam o que quer que fosse. Tinham e preservavam o necessário para viver; esbanjavam, à sua moda, muito amor para com meus pais e seus filhos.

22 2ed8c
Figuras 29 e 30 – Meu casamento, em 24 de janeiro de 1979. Figura da esquerda: Tio Júlio, tia “Nela” e Nicola, seu irmão. Figura da direita: Itália e Nicola, respectivamente cunhada e irmão de tia “Nela”, à direita – fotos de meu acervo.

Guardo dentre tantas lembranças de minha tia “Nela” as histórias de tropeiros e de princesas que me contava em seu colo, no sofá de sua casa, fazendo cafunés em minha cabeça. Apesar de sabê-las de cor, gostava que ela contasse com sua inesquecível entonação de voz. E ela o fez reiterada e prazerosamente por um sem-número de vezes!
Meu tio Júlio faleceu em 24 de novembro de 1987, com 87 anos, e minha tia Nela em 12 de março de 1996, com 95 anos. Foram casados por mais de 65 anos! (Figura 31 e 32). Trabalharam arduamente para conquistar o que puderam desfrutar. Souberam viver a vida com simplicidade, união, alegria, harmonia e muita dignidade. Muito amaram e deixaram agradável fragrância na minha vida e em toda a minha família. Com muito carinho enalteço que eles foram meus segundos pais. A eles minha singela, incontida e inesquecível gratidão!

23 826d3
Figuras 31 e 32 – À esquerda, casamento do tio Julio e tia “Nela” – foto gentilmente fornecida pela minha tia Adélia Iusi Rodrigues. À direita, celebração das Bodas de Diamante – 60 anos de seu casamento, abençoadas pelo estimado padre Bruno Carra. Encontro-me ao fundo, no canto superior direito – Foto de meu acervo.

1A lembrança de alguns nomes e datas foram contribuições da memória prodigiosa minha mãe, Olga Begliomini, assim como a maioria das fotos aqui contidas. As fotos que não foram por ela fornecidas estão com as referências devidamente mencionadas.
 A fim de não me delongar em demasia e de não cometer injustiças por esquecimentos involuntários, propositadamente, não falarei de irmãos, tios, primos de primeiro e de segundo grau, além de cunhados, cunhadas, sobrinhos e afilhados, dos quais, igualmente, guardo inesquecíveis momentos e a grata satisfação de tê-los como parentes.