No meio da noite quente e úmida de verão, despertei. Fui até a cozinha e lá estava ela, a barata, andando sobre o soalho branco, as antenas em riste. Sua cabeça era curta e os olhos me pareceram lânguidos, cheios de cílios. Tâmara marrom avermelhada. Correu como se tivesse medo de mim. Logo eu, que tenho pavor desse inseto gorduroso, saído dos esgotos e desertos para atacar minha ansiedade de mulher.
Franz Kafka, o escritor austro-húngaro, escreveu A Metamorfose, história do caixeiro-viajante Gregor Samsa, que um dia acorda metamorfoseado em um enorme inseto, uma barata. O clímax do livro se instala logo no início, no primeiro parágrafo. Temos que aceitar e continuar lendo a partir de um acontecimento extraordinário. Mas Gregor é tão natural, tão preocupado com seu trabalho, em perder o emprego com o qual mantém sua família que, espantosamente, acreditamos no seu relato. Sentimos um suor frio, um misto de horror e beleza diante dessa mudança estranha e notável. Vêm à tona as perseguições existenciais que sofremos, os nossos questionamentos sobre solidão, fuga, paranoia. Identificamo-nos com o “monstro de dorso duro e inúmeras patas”, que revela nosso desespero frente ao absurdo universo em que vivemos. O pai esconde o filho no quarto, mas, aos poucos, ele é esquecido por todos, encurralado, desumanizado e morre de inanição.
A Paixão segundo GH é um romance ou uma novela da misteriosa Clarice Lispector? Ela responderia que não se importava com essas questões literárias. Era “um livro qualquer”, que deveria ser lido por pessoas de “alma já formada”. Podemos tentar o seguinte resumo: após a demissão da empregada doméstica, uma mulher branca, sem nome (sabemos apenas as suas iniciais gravadas no couro de uma valise), classe média alta, sem filhos, escultora, resolve arrumar, ordenar as coisas, fazer uma faxina no quarto da funcionária. O quarto está limpo, impecável, mas, de repente, surge uma barata. Essa barata “que vista de perto é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas joias”, vai desencadear uma verdadeira epifania, uma enxurrada de revelações, lembranças íntimas, cadeias de analogias súbitas. Energias que atraem baratas emergem do fundo da alma de GH: um calvário de tristezas, impurezas, pensamentos negativos, cóleras, hostilidades, depreciações, abortos, ajustes de contas (“O que fizera eu de mim?). GH se sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos e ela fizera o ato proibido de tocar no que é imundo. Entre súplicas e arrependimentos, ela vê uma matéria branca saindo da barata espremida. Cada vez mais perturbada, fora de controle e com coragem, ela cede ao desejo de comer a barata em expiação, em busca dos instintos mais primitivos que justificassem o encontro de sua verdadeira razão de existir, de sua identidade. GH tinha vergonha de si mesma e da face de Deus. Queria se reorganizar através desse louco ritual, que poderia levá-la ao campo demoníaco. É assim que GH se purifica, se desintoxica dos sentimentos perversos, “limpa a ponto de entrar na vida divina”. Pela porta da danação. Desceu ao inferno. Descobriu que o erro básico de viver era ter repulsa por uma barata. Ter nojo de beijar um leproso. Encheu-se de piedade. O seu antipecado foi comer a massa daquela barata, numa sensação de hipnose, seguida de vômito violento. Depois desse expurgo, veio a alegria, a graça que se chama paixão. Cometera o ato ínfimo, o ato máximo que sempre lhe faltara. A Paixão segundo GH... Paixão com letra maiúscula como a Paixão de Jesus Cristo, que significa sofrimentos físicos, espirituais e mentais. Suspeito que GH seja uma referência a Gênero Humano. GH somos todos nós, estupefatos, necessitados de redenção perante nossos próprios horrores.
Ariadne Cantú, advogada e escritora, que convive de perto com jovens e adolescentes em situação de risco, optou pela linguagem da fábula em O Barato das Baratas, livro que prefaciei. Nessa história, as personagens são baratas que sobrevivem depois de uma hecatombe, de uma explosão nuclear da Terra. São forças da natureza, têm características humanas, muito humanas. Numa sociedade hedonista, encantada com o poder, de valores éticos e morais corrompidos, envolvem-se com um barato alucinógeno que fascina, desorienta, desintegra, esfacela, esmigalha. Tudo nos soa familiar e conhecido. Algo que nos causa asco, mas do qual fazemos parte, às vezes até por omissão. É como se percorrêssemos antros sujos da alma infestada por essas pragas que roem roupas, livros e mentes, criaturas complexas que nos apavoram e aliciam. A autora, de maneira original, com sabedoria e imaginação, aborda o assunto pungente e dramático da droga na contemporaneidade.
Não seria possível narrar sobre o pesadelo de se ver transformado em uma barata, sobre o nojo de comer uma barata ou sobre um mundo onde baratas se humanizaram, sem uma das principais ferramentas do escritor: a verossimilhança. Essa coerência, esse nexo entre fatos e ideias é que nos dá a impressão da verdade que a ficção consegue demonstrar. A criação da suprarrealidade.
O mestre de Teoria Literária, Hênio Tavares, assim nos explicou: “Se a Verdade é o acordo entre o pensamentos e a realidade, incalculáveis são os desacordos entre o pensamento e a realidade, que a longa história das artes registra e imortaliza na consagração da glória.” Há mentiras ou desacordos belíssimos como as lendas e as mitologias.
Tratei aqui das baratas que representam as moléstias espirituais e reais que nos afrontam, escapando pelos buracos e bueiros abertos na crosta do planeta. Imaginem o meu susto naquela noite úmida e quente de verão, quando despertei e dei de cara com uma barata na cozinha. Ela foi mais rápida do que eu e, antes que a esmagasse e a virasse pelo avesso, com patas leves e asas fartas, sumiu pelo ralo. A lâmpada brilhou forte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANTÚ, Ariadne. O Barato das Baratas. Campo Grande/MS: Alvorada, 2014
KAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Biblioteca Folha, 1998.
LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria Literária. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, 5ª edição.