Porto Seguro, Bahia, 1o de fevereiro de 1991. Próximo do meio dia, o sol a pino e inclemente dardejava seus raios luminosos nas brancas areias da imensa praia, aquecendo o chão e o ar que provocavam uma visão de fumaça transparente quando se olhava a longa distância.
Era a primeira vez que estávamos em férias – eu e minha esposa – nessas praias paradisíacas do sul baiano (Figuras 1 e 2).
A sede já se fazia presente após uma longa caminhada de lazer e reconhecimento por essa paisagem encantadora. Decidimos sentar numa barraca à beira-mar para tomar uma cerveja estupidamente gelada e degustar uns acepipes.
Quer contemplando o movimento de vaivém do mar... vislumbrando o céu anil com quase nenhuma nuvem sobressalente... escutando os pássaros que por vezes voavam gorjeando ao nosso redor... quer sentindo na pele a estorricante energia solar... o relax fazia-se presente diante daquela privilegiada mesa em que nos encontrávamos.
1 Novembro de 2012.
Anais do XXV Congresso da Sobrames – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, e do IX Congresso da Umeal – União de Médicos Escritores e Artistas Lusófonos, realizados em Recife (PE), de 8 a 11 de outubro de 2014, páginas 124-127.
Era um dia de semana comum com poucas pessoas na praia, o que favoreceu a visão de um ponto escuro que se movimentava sobre as areias a quilômetros dali. À medida que o tempo passava e a distância encurtava, aquele ponto ia crescendo em tamanho e nitidez. Ainda a um longo afastamento dava para perceber que era alguém que carregava um fardo volumoso em suas costas, fazendo com que sua marcha parecesse um ziguezague: movimentava-se como um pêndulo da direita à esquerda e da esquerda à direita, ao sabor do peso que transportava e da inclinação do chão por onde pisava.
Vinha na direção da barraca em que estávamos e já a umas duas centenas de metros dava para perceber que era um homem que carregava redes de balanço, comuníssimas no nordeste do país. Ao chegar e transpirando em bicas, pediu com simplicidade ao garçom que lhe desse um pouco de água da torneira para beber. Após ingerir rapidamente uns três copos, amenizando sua desidratação, recuperou-se da marcha ofegante e também contemplou por uns instantes a dança das ondas do mar. Criando coragem aproximou-se humildemente de nossa mesa e, mostrando sua extensa mercadoria, disse: Doutor! O senhor não gostaria de comprar uma rede para me ajudar?
Sem estranhar o pedido e tendo acompanhado seu percurso no horizonte por cerca de uma hora, disse a ele que se sentasse conosco à mesa e que experimentasse o que estávamos bebendo e comendo. Ele, meio sem jeito e se sentido um peixe fora d’água, fazia-se de desentendido, até que fui colocando cerveja em mais um copo que havia solicitado e insisti novamente que sentasse junto de nós.
Trajava uma calça comprida dobrada até a altura dos joelhos e uma camisa de manga curta com botões, semiaberta à frente, ambas surradas e descoloridas.
Sentando-se um pouco afastado da nossa mesa, procurei puxar assunto e fui logo perguntando seu nome e se era de Porto Seguro, ao que me respondeu: Meu nome é Sinval e sou do interior da Paraíba.
Sinval era um homem longilíneo, de cabelos e olhos castanhos escuros; fácies afilada e sulcada; com idade semelhante a minha – na casa dos 30 anos – mas que aparentava seguramente dez anos mais. Apesar de magro, tinha musculatura desenvolvida nos ombros e nos membros inferiores em decorrência do exercício que fazia em sua lida diária.
Humilde, acanhado em estar conosco, não tomava iniciativa nas conversas, mas respondia as perguntas que lhe fazíamos. Era casado e tinha filhos que dependiam de seu trabalho, mas ficavam com sua mulher em sua cidade.
Contou-nos que vinha da Paraíba com outros quatro companheiros, numa velha Kombi repleta de redes. Desciam pelas praias do litoral nordestino e, em cada uma delas que tinha potencial turístico, ficavam alguns dias ou semanas à procura de fregueses. Dormia com seus companheiros em redes, ao relento, próximo da mata. Alimentavam-se quando podiam duas vezes ao dia e trabalhavam de dia e à noite, enquanto houvesse possibilidade de fazer negócios. Só retornavam para casa após terem vendido tudo o que haviam trazido, o que correspondia a um período de dois a três meses e meio fora de casa e alheio do convívio familiar. Lamentava que naquele dia já houvesse trabalhado muito e não tinha vendido nada em decorrência dos poucos turistas que estavam na praia.
Sinval não externava nenhum sinal de rancor ou de tristeza pela “sorte” que tivera na vida. Ao contrário, era alegre, disposto e grato a Deus pela oportunidade de trabalho, assim como de conhecer lugares e pessoas diferentes de seu modesto torrão.
Não tinha dúvida que eu compraria seu produto para ajudá-lo, mas chamá-lo para sentar-se conosco e podermos desfrutar de uma conversa solta, despretensiosa de uns quinze minutos, mas que pareceram de uma hora, foi mais do que enriquecedor. Foi uma verdadeira lição de vida!
Ele não somente nos agradeceu pela compra de duas de suas redes, mas também pela cerveja geladíssima que bebeu com inusitado prazer, assim como pelos aperitivos que comeu parcamente. No fundo ele nos foi grato por ter lhe dado atenção e por tê-lo inquirido, escutado, enfim, tratado sem as barreiras que a sociedade nos impinge e o preconceito nos segrega.
Após sua despedida continuou caminhando pela praia, no sentido oposto ao que viera, sob o mesmo clima tórrido. Praticamente sem parar, pois não havia clientes disponíveis para ofertar suas redes, seguia implacavelmente sua sina. Meus olhos continuaram acompanhando-o a distância. Após quase uma hora, Sinval voltou a se tornar um ponto amorfo e movediço no horizonte, atrás das fumaças de calor que subiam dançando do solo... até desaparecer.
Aquele foi um dia inesquecível em minha vida!
Novembro de 2012.
(1) Anais do XXV Congresso da Sobrames – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, e do IX Congresso da Umeal – União de Médicos Escritores e Artistas Lusófonos, realizados em Recife (PE), de 8 a 11 de outubro de 2014, páginas 124-127.