Nos trinta e seis anos em que estive no serviço ativo da Polícia Militar, confesso que nunca compreendi muito bem uma história que se repetiu, por muitas vezes. O roteiro era muito parecido, só mudavam os personagens.
A mãe criava quatro filhos sozinha, ganhando salário mínimo na empresa de limpeza. Morava na periferia, distante do trabalho. Saia de casa às quatro e meia da manhã, deixava o café e almoço pronto para os filhos e ia para o ponto de ônibus, na escuridão da madrugada fria.
Trabalhava das 07 às 16:00 horas em algum escritório chique. Íntegra e humilde, só era notada quando devolvia, intacta, aos executivos, a carteira esquecida no banheiro.
- Como pode? – eles perguntavam na arrogância típica de quem nunca viveu fora dos círculos da elite – ser tão pobre e, ainda assim, ser tão honesta?
A noite, quando chegava em casa, tinha que varrer a casa, preparar e servir a janta, arrumar cozinha, lavar roupa. Ia dormir meia noite e meia para recomeçar tudo de novo às quatro.
Dos filhos, três se tornaram cidadãos produtivos. Dois, fizeram faculdade e o terceiro fez SENAI. O quarto...bem o quarto optou pelo tráfico, em busca da vida fácil que ele (acreditava) - teria.
A mão, no início, ainda tentou argumentar:
- Filho, você quer ter vida de bandido?
- Não, mãe, quero ter vida boa, ter casa em condomínio, carro, mulher bonita, barco, jet-ski. E não essa vida de miséria em que a gente sempre viveu.
- Mas você vai destruir um monte de famílias...
- Eu? Eu não! Não saio oferecendo a mercadoria pra ninguém. Quem quer comprar é que vem até mim. E se eu não vender, outro vende.
- Mas você pode ser morto, ser preso...
- Ossos do ofício, mãe. A senhora também pode sofrer acidente de trabalho.
O rapaz saiu de casa e seguiu a vida. Os irmãos cortaram relações. A mãe, vez por outra, ainda falava com ele.
Um dia, a casa caiu. E ele foi condenado a uma pena longa, no presídio de Itaí.
Todo final de semana em que havia visita, a mãe estava lá. Para custear a viagem e o aumento das despesas, passou a usar os raros momentos de folga para fazer salgados ou pintar e crochetar panos de prato, artes que ela aprendeu na igreja evangélica. E vendia na rua.
Os filhos trabalhadores não se conformavam:
- A senhora dá mais atenção a ele, que só lhe trouxe sofrimento, que a nós, que só lhe trazemos orgulho!
Ela ouvia calada. E dizia apenas que ele precisava de mais atenção, exatamente por ser como ele era.
Quando chegava ao presídio, submetia-se à humilhação da revista íntima. E entregava o “jumbo” para o filho, que ainda reclamava:
- Oh, mãe, eu pedi Nescau e a senhora trouxe Toddy?
E ela, humilde, pedia desculpas e trazia a bebida pedida na semana seguinte.
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Quando fui para a reserva, tive o privilégio de trabalhar por um ano na AACD. Aí, então, consegui resposta para a dúvida que me assaltava.
Lá conheci muitas mães. E a história também era parecida.
Depois de uma espera de nove meses, construindo sonhos e fazendo projetos, o bebê nasceu. Mas não era um bebê igual aos outros. Era um bebê com uma deficiência física severa. Ou com paralisia cerebral.
Foi preciso vivenciar o luto de um sonho desfeito. E permitir a construção de outro sonho, diferente do anterior.
O pai – fraco e egoísta, como a maioria dos homens somos – não aguentou ser trocado pelo bebê, que precisava de atenção integral.
“- Ou ele ou eu”, foi o que disse à mãe. A resposta foi óbvia. E o homem foi-se embora e deixou a mãe arcar sozinha com a criação do bebê.
Conheci bem uma dessas mães. O filho, com paralisia cerebral, só tinha controle sobre o dedo indicador da mão esquerda. Mas passou na FEI.
A professora chamou a mãe.
- A senhora não submeta seu filho à humilhação de ser reprovado em minha matéria. Tire ele da FEI e coloque em outra escola. Aqui, nós temos a tradição de ser uma escola que reprova, e minha matéria é a mais difícil do primeiro ano. E não somos condescendentes com os alunos.
A mãe já estava acostumada com aquilo:
- Olhe, professora, agradeço por sua preocupação, mas vou lhe falar do meu filho.
Quando eu engravidei, o médico disse que o menino poderia ter um problema e me sugeriu abortar. E eu disse que daria a ele uma chance.
Quando ele nasceu, os médicos disseram que ele não sobreviveria. E eu disse pra lhe dar uma chance.
Quando ele ficou menino, disseram que ele nunca se alfabetizaria, e eu disse pra lhe dar uma chance.
E quando ele prestou vestibular, usando um teclado e uma tela com letras grandes, disseram que era bobagem. E eu disse somente pra lhe dar uma chance.
Agora, a senhora quer que ele desista antes de ele tentar. Eu agradeço, mas não vou fazer isso. Ele não vai desistir. Trate-o como qualquer aluno e se ele reprovar, a senhora o desligue. Ele terá, por certo, algumas necessidades especiais, só poderá fazer a prova com uma teclado e uma tela ampliada, mas vou responder à sua preocupação com uma proposta: Aprenda com ele.
A professora se ofendeu:
- Eu sou pós-doutora em engenharia em Heidelberg e não tenho nada para aprender com alunos. Ainda mais – a Senhora me desculpe – com um aluno como seu filho.
O ano terminava quando a mãe da AACD me procurou e me mostrou um SMS da professora:
“Seu filho tirou dez em minha matéria, parabéns. Meu marido sofreu um AVC e eu não sei lidar com pessoas deficientes.“
Foi então que eu aprendi. Mães são diferentes porque amam incondicionalmente, sem esperar nada em troca.
A mãe que tem o filho preso sabe exatamente o filho que tem e o que ele fez. Mas é mãe e ama o filho, tão-somente por ser seu filho.
E toda mãe está sempre pronta a dar uma segunda chance que nós, simples mortais, costumamos negar às pessoas.
É por isso que o amor de mãe é o que, em nossa falibilidade e pequeneza, mais aproxima a humanidade do imenso amor de Deus por nós.