Sou apaixonada por sapatos. Tenho sempre a impressão que bons sapatos me levarão a bons lugares. Confiro saltos e modelos. São como joias brilhando na vitrine.
Lembrei-me de um quadro do pintor francês Ingres intitulado “A Banhista de Valpinçon”, que se encontra no Louvre. Um nu feminino, cheio de graça, de clássica beleza. O erotismo frio, de uma mulher sentada de costas, com um turbante na cabeça, a pele de tons cálidos contra uma cortina de veludo verde escuro. Uma torneira de água acima dos pés moles. A seu lado, as sandálias vermelhas, as tiras enfeitadas de renda. O fascínio despertado pelo pé, parecendo sem ossos e sem tornozelos, prestes a se adaptar na sandália encarnada.
Foi assim também no conto “Cinderela”. O sapatinho de cristal abandonado nos degraus do palácio do príncipe, durante a fuga, à meia noite. E o momento mágico em que tirou do bolso o outro sapatinho, sinal de reconhecimento, prova irrefutável de sua identidade. O pé deslizou sem esforço. Se precisasse forçar não seria o seu tamanho. O relacionamento estaria fadado ao insucesso. Traria conflito, angústia.
Antigamente, era costume em Israel, em caso de resgate ou permuta, para validar o negócio, um tirar a sandália e entregá-la a outro. Símbolo do direito de propriedade, tão arraigado no ser humano. A delimitação dos territórios, das heranças, das nações.
Há uma passagem bíblica em que se recomenda aos peregrinos do evangelho, sacudir a poeira das sandálias quando saíssem de uma casa ou cidade que não aceitasse a boa nova. É preciso mesmo sacudir a dor que sentimos quando rejeitados. Sacudir o pó sem rancor, sem apego, sem discussão. Sacudir o pó da ilusão e do cansaço. Retomar a estrada com esperança. Continuar na missão de peregrino.
O calçado tem uma significação funerária. A morte, afinal, é “quando a gente pode estar deitados de sapatos”, escreveu Mário Quintana. Uma amiga sobrevivente do incêndio do edifício Joelma, que ardeu no centro de São Paulo, contava que ao descer correndo as escadas, só via montanhas de sapatos.
Essa imagem foi utilizada pelo dramaturgo Antunes Filho como recurso na montagem da tragédia de Eurípedes, “As Troianas”, que retrata o final da guerra de Troia a partir do feminino. Mostra o que ocorre com as prisioneiras troianas escravizadas, aguardando no porto o embarque em naus gregas. Troia consumida pelas chamas sob tochas. O tom é lamentoso, de desgraça. As mulheres de luto arrastam pelo palco correntes feitas de sapatos masculinos, botas negras indicando o número de homens mortos e ausentes. A tensão da peça é violenta. Horrores esperam os vencidos.
Hoje, entrarei em casa descalça como quem penetra a soleira de um templo sagrado. O caminhar curto e lento das chinesas com pés atrofiados em faixas. Estou me sentindo culpada, louca rainha Maria Antonieta desejando tantos sapatos. Ainda bem que para o meu coração só desejei você, meu par perfeito.