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Márcia Etelli Coelho
Segundo lugar do Concurso Literário da ABRAMES
Academia Brasileira de Médicos Escritores

Eu sempre me surpreendo com atores e palestrantes que conseguem falar durante horas com voz clara e firme.marcia ettelli coelho 3a eaab1

Algumas orientações, com certeza, contribuem para tal façanha: respiração adequada, hidratação, aquecimento da voz, exercícios e os já consagrados trava-línguas. Ao completar 40 anos de idade, participei de uma palestra que a fonoaudióloga Denise proferiu para uma turma de oito pessoas que pretendiam iniciar tratamento para distúrbios da voz. Inclusive eu que começava a me preocupar com a frequente rouquidão nos finais da tarde.

Depois de uma breve explanação sobre a fisiologia vocal e respiratória, iniciamos os exercícios de trava-línguas:

“O rato roeu a roupa do rei de Roma”.

Maravilha! Eu já recitava esta frase desde os tempos de criança e para mim foi fácil repeti-la cada vez mais rápido em me atrapalhar.

Com imaginação fértil, eu me senti como Eliza Doolittle, do célebre musical “My Fair Lady” que consagrou Audrey Hepburn e, posteriormente, Julie Andrews.

O sucesso com o rato, porém, se esvaneceu com o aparecimento de um tigre. Aliás, não só um tigre, mas dois tigres, três tigres.

“Três pratos de trigo para três tigres tristes”.

Ora! Se apenas muito lentamente eu consegui pronunciar essa frase com clareza, o que esperar quando ela foi repetida com rapidez? Uma embolação total! O “t” atropelou o “r” e o “s”, distraído, se posicionou no lugar que não era o dele, atrapalhando ainda mais a situação.

Sorte que todos também embaralharam as palavras e a consequência foi inevitável: risos. Muitos risos.

Denise explicou que trava-língua é realmente difícil, um conjunto de palavras com sons semelhantes que exigem movimentos seguidos da língua e que estimulam o controle da articulação das palavras.
Antes que desanimássemos, sugeriu mais um:

“Vovó, você viu se Ivo viu a uva”?

Arre! Assim que escutei a palavra “vovó”, meu rosto todo travou. Naquele dia, 26 de agosto, minha avó completaria 100 anos e de imediato minha mente se transportou da sala de aula para uma pequena casa onde, aos domingos, toda a família se reunia.

Minha avó preparava um delicioso bolo de fécula de batata que só ela conseguia fazer, acompanhado de limonada ou no máximo tubaína, visto que os refrigerantes ainda não estavam em voga. Depois conversávamos sobre a escola, os amiguinhos, num aconchego que até hoje sinto falta.

Pois é! Com certeza colo de vó é uma das boas recordações que eu tenho da minha infância. Sempre carinhosa, atenta, conselheira, como tantas outras mulheres simples e batalhadoras nesse mundo.
Será que foi por isso que a avó foi mencionada naquele trava-língua?

Será que só ela, profunda conhecedora da vida, poderia saber se o Ivo viu a uva? Hum! Que sede... Depois de tantos exercícios, bem que eu aceitaria um suco de uva geladinho. Mas onde estaria essa uva senão na geladeira ou na cozinha? E por que a dúvida se Ivo viu a uva?

Imediatamente imaginei Ivo como sendo um garoto sapeca que não queria perder tempo se alimentando e que fingiu se esquecer de comer a uva só para voltar depressa para o seu jogo de futebol. Talvez ele fosse...

Meus devaneios cessaram quando ouvi que “um ninho de mafagafos tinha sete mafagafinhos”.

Tão complicada foi a minha pronúncia que naquele instante conclui que deveria, sim, iniciar o tratamento fonoaudiólogo o mais breve possível.

Por isso mesmo saí da palestra com a consulta agendada e me lembrando, com saudade, da minha avó. Uma grande dúvida, porém, insistia em me inquietar: Afinal de contas, o que vem a ser mafagafinhos?