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Sino Raquel Naveira 1074aMoro perto de uma igreja. Todos os dias repicam os sinos. Imagino o instrumento de chumbo, ferro e estanho, percutido na superfície interna por um badalo suspenso entre o céu e a terra. A vibração primordial purifica os ares, afasta o mal. Desde épocas remotas foram instalados sinos em altas torres. Esse rumor agudo atravessou séculos até chegar aos meus ouvidos, em pleno centro da cidade.

O poeta e pastor John Donne, famoso orador sacro, nascido em Londres em 1572, fascinado pelo eterno conflito entre o corpo e a alma, os apelos da carne e as imposições do espírito, afirmou em suas Meditações que a morte de qualquer homem nos diminui a todos porque fazemos parte do gênero humano. Porque nos sabemos seres efêmeros e mortais. Por isso, quando os sinos tangem, nunca deveríamos perguntar por quem eles dobram. Nunca deveríamos perguntar o nome de quem morreu. A resposta será sempre: “_Eles dobram por ti.”

Aproveitando esse gancho, o escritor norte-americano, Ernest Hemingway,publicou em 1940 o romance Por quem os sinos dobram. Trata-se da história de Robert Jordan, um jovem americano das Brigadas Internacionais, professor de espanhol, que se tornou conhecedor do uso de explosivos. Durante a Guerra Civil Espanhola, recebe a missão de espalhar pelos ares uma ponte por ocasião de um ataque à cidade de Segóvia. O livro é uma crítica ácida à violência dos dois lados: o dos nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e o dos nazistas alemães, apoiados pela União Soviética. Mostra assim o fracasso da guerra e da destruição do homem pelo homem.

E, quem diria, num estranho caso de intertextualidade, o mesmo título serviu para o nono álbum de estúdio solo do cantor e compositor roqueiro, Raul Seixas,lançado em 1979, época conturbada de sua vida, depois do fim do segundo casamento e de uma ocorrência policial. O disco traz clássicos como a canção “O Segredo do Universo” e a faixa “Por quem os sinos dobram”, uma letra que incita à coragem de sermos aquilo que pensamos e fazemos; que alerta para o fato de nunca vencemos uma guerra sozinhos; que não devemos atirar a culpa de nossos erros nos outros.

Temos mesmo essa sede de paz e de justiça. O Príncipe da Paz, aquele que viria, segundo as antigas escrituras, trazer luz, alegria e libertação seria o messias prometido. E ele veio, mas a sua paz não era deste mundo. Ele nasceu ao som de sinos. Carlos Drummond de Andrade assim concebeu a cena em seu poema “Vi nascer um deus”: “O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino/ há um silencioso motor, uma confidência e um sino.” Lindo! Um sino de ouro, uma música nobre, de repercussão divina.

Já Alpnhonsus de Guimaraens, o poeta simbolista e místico, que viveu entre Ouro Preto e Mariana, lugares repletos de igrejas barrocas e campanários, descreveu num de seus poemas um sonho. Nele via surgir uma catedral de mármore branco como o sol e o luar. E o sino ora cantava, ora chorava, em “lúgubres responsos”: “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” Que interessante recurso onomatopaico reproduzir o som melancólico dos sinos utilizando o seu próprio nome! Misto de beleza e autocomiseração. A alma sofrida e inadaptada do poeta diante da morte, da solidão e do amor impossível imitava o som dos sinos que o rodeavam. Sinos envoltos no tafetá verde das montanhas de Minas Gerais.

Ouço pancadas de sinos. Serão as horas passando? Algum anúncio de guerra e fim do mundo? O timbre de algum signo misterioso? Não sei. Estou confusa. Tremo como uma taça de cristal, o coração confrangido no meio da cidade.