Louco é aquele que vive fora dos limites da razão, dos muros, do jogo, das normas da sociedade. Há loucos que tinham tudo e tudo perderam bruscamente. Caíram em desgraça. O que não tinham nada e, de repente, adquiriram tudo, como quem ganha na loteria ou uma herança inesperada. Os que tudo sacrificaram em troca da sabedoria transcendental como os monges e os iniciados. Há os doentes mentais, de olhos esbranquiçados que guardam um mistério. Era dessa espécie Maria Bolacha, que marcou a Cidade Branca na década de trinta. Tornou-se personagem de dois autores corumbaenses: o poeta Lobivar Matos e o cronista Ulysses Serra.
Lobivar Matos (1915-1947), cujos textos foram dedicados aos excluídos, aos pobres, operários, lavadeiras, negros e índios, descreve-a como uma velha, baixota, enrugada, chinelos furados, dedo de fora, pedaço de pau na mão, saco dependurado nas costas, saia rasgada, trapos sujos sobre o corpo. Corria pelas ruas xingando os meninos que a molestavam.
Ulysses Serra (1906-1972), explicou numa de suas crônicas urbanas que Maria Bolacha e Josetti eram “dois tipos populares”, paisagem humana a constituir a alma móvel das ruas. Dois temperamentos opostos, contemporâneos de calçada, engastados na fisionomia da cidade. Segundo ele, Maria Bolacha era uma “anciã, morena, cor de mate, baixa e gorda, olhos verdes, andar de papagaio e de pano à cabeça.” Personificava o inconformismo, a luta, a resistência. Quando os garotos gritavam-lhe o apelido, que ela detestava, achava humilhante, respondia com palavrões, vibrava o chicote que sempre tinha às mãos e perseguia os seus agressores. Todos os dias, o dia todo, era alvo de zombarias e reagia com ferocidade. À tardinha, cansada e fraca, pedia clemência aos moleques, que não a chamassem assim, pedia. Eles sentiam pena, ficavam quietos e estabelecia-se uma trégua. Súbito, sobrevinha um novo “Maria Bolacha”. Um novo palavrão e ela arremessando a chibata na direção de seus pequenos algozes.
Ulysses conta que um dia, extenuada pela peleja e já doente, voltou para sua cabana no sítio onde nascera na Mata do Segredo. Enquanto teve forças, disputou o direito de viver em liberdade, defendendo sua dignidade, apesar do convívio sórdido com as ladeiras lamacentas do porto.
Não conheci Maria Bolacha, apenas ouvia falar dela. Mas me lembro de outros loucos: o Josetti, também personagem de Ulysses, com suas mãos cobertas de anéis, suas recordações do tempo em que era rico e se vestia de linho e cambraia, de sua história trágica de amor e rejeição e do Pompílio, esse sim o mendigo andrajoso, o louco da minha adolescência, que dormia com seu cachorro no banco da praça Ari Coelho, tomava café com leite no bar da esquina de minha casa e que eu cumprimentava a caminho da escola. Quando soube que um camburão havia levado embora o Pompílio para um asilo, fiquei triste. Alguma coisa me revelou que a cidade não abrigaria mais loucos como ele: romântico, manso, amigo, vagando à luz da lua.
Estava certa. A cidade cresceu, complexa. Os tempos mudaram e hoje assistimos a uma procissão de entes desorientados; usuários de drogas; prostitutas agressivas; almas machucadas; mentes estraçalhadas; jovens em dívida com traficantes; expressões alucinadas; corpos cadavéricos; canudos quentes acesos em bocas queimadas; gente de comportamento bizarro, errático e violento. Cidade devastada por uma loucura que está no limite zero da palavra, no vazio, nas presenças que se tornaram ausências, no vácuo.
Maria Bolacha, Josetti, Pompílio... nem têm mais nome os loucos.