Raquel Naveira
Quando criança, ouvia dizer que minha terra natal, Campo Grande, no sul do antigo Mato Grosso, era “uma ilha de turcos cercada de japoneses por todos os lados.” Por “turcos” entendiam-se os povos árabes e armênios em geral, como libaneses, sírios, turcos, palestinos e armênios que se fixaram no centro da cidade, vocacionados para o comércio. Os japoneses rodeavam a cidade com seus sítios, plantações e hortas que abasteciam o grande Mercado Municipal.
Minha memória afetiva construiu-se assim, observando a cidade como um quebra-cabeças de povos, costumes e amizades. Meu avô, um português alcunhado “Carvalhinho”, era um homem ao mesmo tempo culto e simples, que gostava de poesia, de gente e de natureza. Pelos olhos dele, segura por suas mãos, atravessando ruas, percorrendo campos e casas, logo comecei a reconhecer os armênios, aqueles cujos nomes terminavam em “ian”.
Meu avô me falou da Armênia, na Eurásia, entre o mar Negro e o mar Cáspio, ao sul do Cáucaso, fronteira com a Turquia. Contou-me das relações culturais da Armênia com a Europa, que pertencera à União Soviética, que fora a primeira nação a adotar o cristianismo como religião. Horrorizado, tomado de temor, explicou sobre o genocídio ocorrido entre 1915 e 1923, durante a primeira Guerra Mundial, perpetrado pelo Império Otomano e negado até hoje pela República da Turquia. Milhares de armênios mortos, outros deportados, a diáspora gigantesca pelo mundo de descendentes que fugiram das perseguições e tomaram o rumo de países como França, Estados Unidos, Argentina, Brasil e no Brasil chegaram ao distante Mato Grosso, de gado solto nas pradarias verdes. Mais tarde, escrevi um romanceiro intitulado “Sob os Cedros do Senhor: poemas inspirados na imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul” (São Paulo: Scortecci, 1994) onde registrei os fios, os vestígios, as lembranças.Foi assim que surgiram poemas, como este “Nacionalidade”:
Sou de Marden,
Turquia,
Se bem que Marden pertencia à Síria
Antes dos turcos,
Minha nacionalidade é armênia,
Confira no passaporte,
Não sei como nascido na Turquia
Sou armênio,
Filho de armênios,
Gerado na Síria,
Ocupada por turcos.
Armênio,
Sírio,
Turco,
Sou daqui de Campo Grande,
Aqui tive prole,
Negócios,
Lucro.
A Armênia foi o suposto local do Jardim do Éden, com a montanha bíblica do Ararat, onde a arca de Noé encalhou após o dilúvio. Arqueólogos continuam a descobrir até hoje no planalto armênio sinais das antigas civilizações primitivas que ali viveram. Por isso escolhi a figura do arqueólogo para leitmotiv do poema “Armênia”:
Sou arqueólogo
Em missão na Armênia.
Recolhi documentos e objetos importantes:
Um mapa persa,
Uma estátua bizantina,
Uma moeda de Dikran II,
Um manuscrito de Tadeu, o evangelizador,
Outro com o alfabeto armênio.
Sou arqueólogo
Em missão na Armênia,
Próximo ao monte Ararat,
Atesto uma cultura,
Que resistiu aos árabes
E se espalha no ar.
O monopólio do comércio de calçados na rua principal, a rua 14, sempre pertenceu aos armênios:
Armênio,
Deportado para a Grécia,
Trabalhei em lavouras de fumo,
Tomei outro rumo,
Um país,
Uma cidade do oeste,
Boa praça para o comércio;
Meu ramo: calçados,
Que eu mesmo fabrico
Com couro e cola,
Ponho na charrete e sumo
Pelas bancas de Aquidauana e Bela Vista.
Enquanto não tiver loja na 14,
Com letreiro e monopólio,
Não sossego,
Não durmo.
Como esquecer da minha ruiva amiga de infância, a cantora lírica, Sônia Chinzarian?
Na loja Rochedo
Refulgiam baixelas,
Panelas,
Adornos de prata,
Vasilhames de cobre,
Faqueiros de aço.
Quando o sol passava pelas prateleiras
Os metais cintilavam
Entre papeis púrpuros
E laços de fita.
Brilho maior
Eram os cabelos vermelhos,
Cascata de fogo,
Torrente de ferrugem
Sobre os ombros
Da menina armênia.
Da atriz Aracy Balabanian coloquei em versos esta história que ela mesma me contou:
A menina armênia
De olhos saltados,
Nariz adunco,
Queria ser anjinho
No auto de Natal;
Anjinho só loirinha,
Que tal pastorinha?
A menina cresceu,
Virou atriz,
Um dia, para sua surpresa,
O diretor lhe disse:
Você veio da terra sagrada,
Oriental,
Exótica,
O papel que lhe cabe
É o de Maria.
Em cima da Casa Glória de calçados, que ficava na Rua 14, morava a senhora Lúcia Belalian. A ela dediquei o poema “Melkin”:
Melkin,
Viúva,
Vive entre livros e lembranças.
Sobre a mesa de madeira tosca e queimada,
Entre frasqueiras
E estantes empoeiradas,
Estuda francês,
italiano,
armênio,
Enquanto ouve música clássica
Em discos de antigas rotações.
Melkin,
Viúva,
Viaja pelo mundo,
Sozinha aventura-se na descoberta
De sua essência verdadeira.
Perpetuei a amizade e a admiração pelos armênios através da professora Sossi Amiralian (1932-2019), ex-coordenadora do curso de Armênio da USP, que publicou esses meus poemas no seu livro Armênios e Brasileiros: marcas de uma convivência (São Paulo: Recriar, 2019). Em tempos de guerra pelo mundo, é importante hastear a bandeira da Beleza e da Fé de Ser Armênio