Raquel Naveira
Se eu fosse uma flor, seria uma margarida. De pétalas fechadas ao entardecer e toda aberta, cheia de contentamento, acolhendo o sol, ao despertar pela manhã. Quando criança, despetalava a margarida para saber o número de anos que faltavam para me casar, repetindo o refrão: “Bem me quer, mal me quer.”
Margarida, em inglês, daisy, significa “o olho do dia”. A flor justifica esse nome pelo movimento de dobrar a corola ao final do dia, como se fosse dormir. Lembrei-me do nosso velho professor de inglês, no curso Clássico, Nagib Raslan, magrinho, com seu jaleco branco e uma régua na mão, escrevendo no quadro a letra de uma antiga canção popular, Daisy Bell. A letra dizia assim: “Daisy, Daisy, give me your answer do/ I’m half crazy all for the love of you.” Traduziríamos assim: “Margarida, Margarida, dê-me sua resposta/ Estou louco de amor por você.” Regida pelo mestre/maestro, eu cantava como se fosse uma condessa britânica, prestes a trocar o luxo das carruagens por uma bicicleta construída para dois amantes.
A primeira vez que esse nome, Margarida, entrou com força em meu imaginário, foi ao assistir, na década de setenta, à novela de maior audiência de todos os tempos: As Pupilas do Senhor Reitor, com a atriz Márcia Maria no papel da doce Guida e Agnaldo Rayol como o donjuan Daniel. Mais tarde, li embevecida o romance português de Júlio Diniz que inspirou a novela. A temática girava em torno da tese segundo a qual a vida simples e natural torna as pessoas alegres e felizes. O autor descreve os campos, as figuras humanas, os hábitos e ideias, os costumes burgueses. As personagens são autênticas, reais. O Dr. João Semana, por exemplo, é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, médico de Júlio Diniz, já tuberculoso, fazendo tratamento na aldeia de Ovar. O Reitor encarnava o clero convertido a uma postura liberal. Margarida era a heroína, a mulher-anjo, fada ou samaritana, plena de virtudes, capaz de recuperar com mansidão o mais duro dos homens. Resumindo: beleza e bondade encantam e mudam as circunstâncias difíceis.
Visitando o Museu do Prado, em Madri, um quadro me chamou a atenção: “As Meninas”, de Velasquez, pintor da corte espanhola no século XVII. A infanta Margarida, aos cinco anos, com um vestido dourado, no estúdio do artista, cercada por damas de companhia, os olhos cravados em seus pais, cujo reflexo é visível no espelho da parede. Fiquei imaginando qual teria sido o destino de Margarida: casou-se? Permaneceu solitária? Envelheceu trancafiada num castelo? Ficou louca? Sucumbiu a alguma febre? Pústulas de varíola fecharam-lhe a garganta? Foi exilada para um país distante? Decapitada? Um mistério. O retrato de Margarida é tão fascinante que Pablo Picasso pintou, séculos depois, mais de quarenta variações dessa obra.
Pesquisei: ela se casou ainda menina com o imperador do Sacro Império Romano Germânico, Leopoldo I, seu tio. Faleceu de parto aos vinte e dois anos, pobre e frágil Margarida, com sua testa ampla, gerada por príncipes de Habsburgo.
A margarida representa a inocência. A inocência nos protege, enquanto andamos distraídos, perfurando noites e dias. Seria uma margarida, se fosse flor.