Raquel Naveira
O sangue é o veículo da vida, das paixões e da alma. O coração, bomba de sangue, é a fonte do amor. Palpita, pulsante, escorrendo águas primordiais. É o centro da inteligência, da intuição. Pássaro de veias quentes que se debate no peito.
Associo a palavra “sangue” à obra de Federico Garcia Lorca, autor da peça teatral “Bodas de Sangue”. Para ler um criador múltiplo como ele que trabalhou diversos gêneros como teatro, música e dança, misturando regionalismo, tradição oral e invenções ousadas, é bom começar pelo cerne: a sua poesia.
Lorca nasceu em 5 de junho de 1898, em Fuente Vaqueros, quando a Espanha tentava florescer nas letras e nas artes. Granada, sua província de sortilégios, foi seu berço e seu túmulo. Carismático palestrante e conferencista. Quando recitava, acompanhando-se ao piano, criava-se em torno dele uma atmosfera mágica e sedutora.
Não há como separar a vida de Garcia Lorca de sua obra, elas constituem verso e reverso da mesma medalha. Seu corpo jamais foi encontrado e, provavelmente, desceu a uma vala comum. O terrível dia de seu fuzilamento já foi descrito por vários escritores. Foi assassinado covardemente. Tiraram-no de casa de madrugada e o fuzilaram numa carreta, no verão de 1936. As paixões ferviam no coração dos homens de uma Espanha em crise. O presidente Azaña e seus ministros republicanos de esquerda em vão tentavam conter a agitação revolucionária. Começaram os crimes políticos. Alargava-se a brecha entre a Espanha monarquista e católica e a Espanha republicana revolucionária e, para enfrenar os extremistas, organizou-se outro partido, a Falange.
Não há consenso sobre o posicionamento do poeta. Na verdade, não pertencia a nenhum partido: como artista de vanguarda era democrata; como homem, era um burguês que temia a demagogia. Era delicado, sensível e cordial. Sentia-se integralmente espanhol, mas amava as viagens: percorreu toda a Europa, Estados Unidos, Canadá, toda a América Latina, Argentina, Uruguai e Brasil. Por onde passou, recebeu palmas de êxito e admiração. Garcia Lorca nunca supôs que, em sua Granada romântica, alguém pudesse detestá-lo a ponto de entrega-lo à sanha falangista.
Folheando o livro Federico Garcia Lorca- Livros de poemas, canções e outras poesias, encontramos vários versos que falam de sangue, como estes de “Canção Oriental”:
... a romã é o sangue,
Sangue do azul sagrado,
Sangue da terra ferida pela agulha do regato.
Sangue do vento que vem
Do rude monte arranhado.
A romã é a pré-história
Do sangue que em nós levamos,
De sangue a ideia fechada
Em glóbulo duro e azedo,
Que tem uma vaga forma
De coração e de crânio.
A famosa peça Bodas de Sangue, baseada em fatos reais ocorridos com camponeses da Andaluzia, conta a história de uma noiva que foge no dia de seu casamento, provocando uma tragédia em duas famílias: a do noivo e a do amante. Foi apresentada, pela primeira vez, em 1933, abrindo uma nova era no teatro moderno.
Ainda visitando a Espanha, vimos um quadro espantoso do pintor Goya, intitulado Os fuzilamentos de Três de Maio de 1808, que retrata um banho de sangue. É uma imagem chocante da desumanidade. Os exércitos de Napoleão ocuparam a Espanha, mas, em 2 de maio de 1808, os cidadãos de Madri levantaram-se contra os franceses. No dia seguinte, o exército francês revidou com uma terrível vingança, executando centenas de rebeldes e muitos observadores inocentes. Goya registrou esses fatos alguns anos depois, quando o rei Fernando VII foi reconduzido ao trono espanhol. O quadro evoca o massacre impiedoso de forma realista: o cadáver um primeiro plano jaz de bruços sobre uma poça de sangue. No centro do quadro, a vítima ergue os braços na posição simbólica do Cristo crucificado. A cena da chacina é lúgubre. Há um ponto de união entre o assassinato de Lorca e esse quadro de Goya: noites negras e implacáveis, que selaram os destinos dos que lutaram conta a opressão.
Sangue... Jesus pagou com sangue o nosso resgate do mundo das trevas. Sangue é dinheiro. Dinheiro é sangue. Por ele se mata e se morre. Por ele, damos o nosso sangue em sacrifício. Escrevi:
Sangue,
Moeda corrente,
Quantia fluída,
Soma de tecidos,
Rico líquido.
Sangue
É tudo que possuo,
Bem mais precioso.
Quanto custa um sonho?
Um filho?
Um tesouro no céu?
Pago em sangue.
Deixo de herança
Gotas de sangue
Para serem colocadas em vasos,
Rosas vermelhas.
Sangue
Dinheiro de resgate,
Imploro pela parte que me cabe
Do teu, Jesus,
Derramado na cruz.