Construída no canteiro central, na esquina da Avenida Afonso Pena com a Calógeras, a réplica do antigo relógio da Rua 14 de Julho foi reinaugurada. O monumento revitalizado segue como importante cartão postal de nossa cidade.
O relógio original, que conheci tão bem na minha infância, ficava mais abaixo, na esquina da Avenida Afonso Pena com a Rua 14 de Julho. Era um símbolo de progresso, ponto de encontro de todos que por ali passavam.
Foi demolido devido ao aumento no fluxo de veículos no trânsito da área. Como se fosse possível arrancar, por exemplo, o Arco do Triunfo da Avenida Campos Elísios de Paris ou algum outro marco arquitetônico com esse argumento. O relógio fazia parte de nossas lembranças mais profundas, de nosso passado, de nossas origens. Pensando assim, escrevi:
Na rua 14 havia um relógio.
Um relógio alto como uma torre,
Amarelo como uma fotografia antiga;
Era um relógio de grande utilidade:
As pessoas sabiam se estavam atrasadas
E sentiam o escorrer dos minutos;
No Natal, virava presépio,
O Menino Jesus de olhos de vidro,
Separado do público por grossas cordas;
No carnaval, virava pagão,
Um rei Momo gordo,
Pendurado pelas bochechas
Chamava para a folia,
Para os bailes de máscara,
Para as orgias do esquecimento;
E depois, era um relógio solene
Em que se podia marcar um encontro
Nas tardes mais azuis.
Quem tirou o relógio da 14?
Parece que foi sonho...
A gente era criança,
Veio um ser de outro planeta
E com mãos gigantescas
Arrancou o relógio,
A cidade amanheceu sem relógio,
O tempo galopando nas esquinas;
Crescemos de repente,
Sem marcas de ferro nas lembranças,
Sem o apoio dos ponteiros,
Soltos no espaço.
Senhores contemporâneos,
Amigos de infância,
Passageiros desta terra,
Devo lhes confessar o que descobri:
O relógio da 14 sumiu...
Imediatamente após a publicação desse poema no jornal Correio do Estado, há quase três décadas, vários foram os desdobramentos: faixas, cartazes, exposições de fotos e quadros, confecção de camisetas, clamores de ativistas culturais para que o relógio voltasse ao seu lugar. Seria necessário resgatá-lo, trazê-lo de volta ao coração da cidade. As pessoas haviam amadurecido e exigiam respeito à sua história. O poema transformou-se numa música na voz aguda e na craviola de Tetê Espíndola, que está no nosso CD “Fiandeiras do Pantanal”. O relógio foi então reconstruído por iniciativa do Rotary Club de Campo Grande. Uma cópia idêntica, em alvenaria, com cinco metros de altura. Na ocasião, celebrei a volta do relógio:
O relógio voltou!
O mecanismo,
As rodas dentadas,
As molas finas como cabelos,
O mostrador,
Os ponteiros negros
São os mesmos.
O relógio voltou!
Estava na memória,
No limbo,
Num baú,
No sótão,
No mundo das ideias,
De repente tomou forma,
Virou imagem,
Ferro e cimento,
Move-se
Na eternidade
Deste momento.
O relógio voltou!
De amarelo
Tornou-se azulado,
Cor de chumbo,
Exorcizando o efêmero,
Partindo o tempo em pedaços
Jogados pela cidade,
Pelas vidas dos homens,
Cada vez mais finitos
E angustiados.
O relógio,
O que corroía nosso coração,
O vigia da noite,
A clepsidra antiga,
Voltou!
Podemos preparar festas,
Orgias,
Êxtases,
Escapar da ordem cósmica
Que lá estará ele
A nos arrastar para dentro da razão,
Para fora do caos.
O relógio voltou!
Voltou ao seu espaço,
Indissoluvelmente.
O relógio restaurado voltou a marcar o tempo neste mês de agosto. Tempo límpido e líquido, soprando velozes segundos entre folhas secas. Passou merecidamente a ser chamado de Doutor Renato Barbosa de Rezende, médico brilhante e generoso, que esteve à frente do projeto de construção da réplica, naquele ano de 2000. Ao pé do relógio, conserva-se a placa: “De volta aos bons tempos- resgatar a história é preservar a realidade do homem. Com o relógio, retornam as memórias de uma época notável, testemunhas imparciais que iluminam as verdades e mudanças da vida.”
Nas roldanas do relógio pulsam os instantes e os séculos de uma capital do centro-oeste brasileiro voltada ao progresso e à criação de uma identidade artística, sensível e real.