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Penteadeira ce077Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe parecia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, passava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio abertos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia. Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepúsculo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha vontade de chorar. A mãe envelhecia tristemente. Algo acontecera no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.

A princípio, quando pequena, a filha a considerava uma rainha, a mulher mais bela do mundo, enquanto a mãe confirmava seu encanto no espelho mágico da penteadeira. A mãe ajeitava as mechas louras, passava lápis preto ao redor dos olhos claros. Mirava-se de longe e de perto como se o espelho fosse a superfície da água e ela uma espécie de Narciso. Sim, Narciso, aquele rapaz da mitologia grega, objeto da paixão de ninfas e mortais, mas insensível ao amor. Ao abaixar-se numa fonte para saciar a sede, olhou seu reflexo. Ficou seduzido pela própria beleza. Indiferente ao mundo, apaixonada por si mesma, a mãe se inclinava sobre sua imagem com meneios do corpo, projetando para a frente os seios alvos de flor.

O espelho da penteadeira brilhava, quando a mãe perguntou: “_ Minha filha é mais bonita do que eu?” O espelho respondeu com a voz da filha: “_ Ela é mil vezes mais linda.” A mãe se enfureceu: “_ Minha filha tornou-se uma ameaça. Preciso devorar seu coração, ter um comportamento semelhante ao dela, competir. O pai sempre foi um fraco, ambivalente, um sumido no mundo.  Não adiantará ela tentar fugir, penetrar florestas. Tenho poder sobre ela, reaparecerei em sua vida em todas as fases, em todas as circunstâncias, em todas as noites de lua, quebrando caixões de vidro, imobilizando-a com cintos apertados de fitas, cravando pentes pontiagudos e venenosos em sua cabeça. Ela é da mesma matéria que eu, do mesmo sangue, da mesma árvore, da mesma vaidade, da mesma atração, da mesma fraqueza humana. Destruirei sua paz interna, devastarei, dividirei com ela a maçã branca e vermelha do desejo maduro até o fim, até calçar sapatos de ferro e sair dançando em direção ao abismo, até o renascimento, até nossos ossos virarem um punhado de cal e neve.”

Sentada no banco de couro da penteadeira, a filha observa o espelho numinoso com o terror que inspira o autoconhecimento. Relembra o nostálgico poema de Cecília Meireles: “Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, triste, magro, nem os olhos tão vazios e o lábio amargo. Em que espelho ficou perdida a minha face?” Tantos anos se passaram...Como elaborar um conflito que a consome há séculos? Um dilema de mulher? Bem que um duque grisalho tentou protegê-la, arrancar em vão de sua boca o pedaço da maçã que a sufoca. Ela lhe disse: “_Perdoe-me. Não posso me libertar de minha raiz. Agora vemos por esse espelho realidades invertidas, enigmas, mas um dia veremos tudo face a face.”

Restaurou a antiga penteadeira. Dentro do espelho, um espírito em forma de máscara, rodeado por fumaça e fogo, continua falando a verdade.