Ouço sua voz ao celular, num tom preocupado: “_ Onde você está? Em que lugar?” Penso, numa fração de segundos: o que é um lugar? Alguns geógrafos diriam que é uma porção de espaço dotada de significados particulares, propícia às relações humanas. Outros que é uma paisagem cultural como a rua onde passamos a infância, a região que habitamos, uma casa, uma fazenda, tudo permeado pela percepção do afeto. Talvez lugar seja uma cidade, uma aglomeração cheia de atividades, negócios, lojas, calçadas, túneis, avenidas e indústrias. O poeta Dante Milano afirmou que “Maior felicidade/ Que amar uma mulher,/ Amor de longo olhar/ E presente saudade,/ Amor muito maior,/ É amar uma cidade.”
A voz insiste: “_ Em que lugar?” Tremo. Meu Deus, onde estou? Leve-me aonde preciso ir, aonde devo chegar. Olhe a minha condição e mude as circunstâncias. Qual ave longe do ninho, ando vagueando longe do meu lugar. Conduza-me ao alvo, dê-me direção, decisão certa. Preciso avançar, caminhar para meu destino. É um drama para mim ter de viver em algum lugar, se é na linha do horizonte que eu desejaria morar. Como são inúmeros os desejos de uma pessoa! Por enquanto há sonhos, esperança, eu sei. Aquilo que ambiciono pode ser um falso substituto de minhas necessidades mais profundas como intimidade, satisfação e segurança. Quero uma dose maior de gratidão e maturidade. No mundo dos mortos há sempre lugar para mais um ser desejante que tornará ao pó.
Respiro fundo. Salomão observou que na Terra, no lugar onde deviam estar a justiça e o direito, o que a gente encontra é a maldade. Em vão, tentamos endireitar os erros, apontar as iniquidades, curar as feridas. Perdemos tempo e energia exigindo que este sistema seja reformado. Que a máquina do mundo seja concertada. Tarefa pesada. Não temos meios para fazê-la. Melhor encarar meu próprio dilema: em que lugar estou?
Diante da voz assustada, respondo simplesmente: “_Estou em frente à Baía da Guanabara”. Um lugar lindo, um cenário encantado: as montanhas de rochas, as encostas verdes, o formato de seio do morro arredondado, alguns riscos de asas de gaivotas. Foi aqui, neste lugar, que o navegante Gaspar Lemos, da frota de Pedro Álvares Cabral, entrou no golfo com sua nave, num janeiro longínquo de 1502. Pensando tratar-se de um rio, chamou o local de Rio de Janeiro. Foi aqui que os índios tupis viram, no meio do nevoeiro, adentrando o portal, a embarcação de velas insufladas como um balão. Foi aqui, neste lugar, em 1808, que a corte portuguesa, fugida às pressas das tropas invasoras do imperador francês Napoleão Bonaparte, atingiu a sua mais importante colônia, o Brasil. Eram nobres, padres, servos, valetes, milhares de livros e quadros, príncipes e uma rainha louca desembarcando no mangue. Foi aqui, neste lugar, que o poeta Fernando Pessoa imaginou que seu heterônimo, o médico latinista Ricardo Reis, à beira do estouro da Segunda Guerra Mundial, aportou, autoexilado de Portugal, escapando de revoluções e monarquias destronadas. Comovo-me: foi aqui, neste mesmo lugar em que piso. Vejo um barco ao longe. Jamais irei nele, mas parece que seria o barco de minha viagem.
Sua voz ao celular ficou semelhante à de Deus quando perguntou a Adão aonde ele estava. Bem sabia que a criatura provara do fruto da árvore proibida. Mas a graça e o perdão ainda o procuravam, ainda o alcançariam. Volto à realidade: “_ Estou aqui, meu amor, no lugar de sempre: dentro de mim.”