Raquel Naveira
O poço ficava no quintal, ao lado da varanda de treliça verde. Era um círculo estreito, guardando um abismo, uma fonte, um mistério. Ouço ainda o barulho das roldanas levando o balde de alumínio ao fundo, que voltava com água fresca pontilhada de estrelas.
Causava-me medo aquele poço, luneta gigante apontando para o útero da terra e não para os astros. Apontando, talvez, para os infernos, para o limbo, para o musgo, para a morada dos mortos cheia de ecos, palavras absorvidas pelo silêncio.
Aquele poço estava no meio do meu caminho, como a pedra do poema de Drummond. Era sagrado, a boca aberta para o cosmos, às vezes tampada por uma tora de madeira. Eu passava perto, reclamando de sede, sentindo-me perdida como Alice, a do País das Maravilhas que, seguindo um coelho branco, de olhinhos vermelhos, que passou correndo perto dela, entrou numa toca que parecia um túnel e caiu. Caiu num poço muito, muito cavado. A menina não sabia se estava caindo devagar ou se o poço não tinha fim. Ficou assustada. Olhou para baixo e não viu nada. Estava tão escuro! De repente, acordou. Acabara-se o tombo. Foi nesse espaço que ela bebeu poções mágicas; cresceu e diminuiu de tamanho em frente a espelhos. Encontrou a Lagarta, o Peixe, o Gato Maltês, a Duquesa, o Chapeleiro Maluco, a furiosa Rainha de Copas que queria lhe cortar a cabeça, o mitológico Grifo, a Tartaruga Fingida e outros personagens, num sonho vertiginoso de aventuras irônicas e lisérgicas. Alice escancarou a porta do surrealismo, onde os relógios derretem nos degraus das escadas e as imagens passam sem controle pela mente.
Já havia germes da imaginação fantástica dentro de mim. Lembrava-me da história contada pelos irmãos Grimm em que um soldado, conduzido por uma bruxa, desceu num cesto preso a uma corda ao fundo de um velho poço sem água, no qual caíra um lampião. O lampião espalhava uma bela luz azul que nunca se apagava. E lá, um anão escondido na fumaça de um cachimbo, pegou-o pela mão e o levou por um corredor subterrâneo, cheio de tesouros. O soldado, claro, depois de muitas peripécias, casou-se com a princesa de um reino próspero.
Quase mergulhei nesses delírios, a cabeça pendida no buraco do poço, os olhos buscando segredos. Súbito, atirei nele os desejos de minha mocidade e rejeitei questões loucas de meu espírito. Tudo boiou lá embaixo, tilitando como moedas de ouro.
Foi num poço assim que Jacó encontrou Raquel, a pastora de ovelhas. Beijou-a e chorou de paixão. Tão curta a vida, tão grande o amor... Foi num poço assim que Jesus deu de beber à mulher samaritana a água viva do conhecimento. Bem que ela estranhou, judeus não conversavam com samaritanos, ainda mais com uma mulher. Como ele tiraria água do poço se estava com as mãos vazias? Mas ele insistiu, disse que mataria sua sede. Ela, uma mulher só, embora tivesse tido tantos relacionamentos. Largou o cântaro na borda do poço, o coração disparado com a revelação.
Para entrar na varanda, onde havia uma mesa com livros e cadernos escolares, eu calçava com cuidado as chinelinhas de borracha encostadas no poço. Um limo verde ficou entranhado para sempre em meu corpo, em minha alma.