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Tiro pela milésima vez o pó da cristaleira, dos objetos de prata que me prendem com sua necessidade de lustro. A terra de minha cidade é seca, vermelha e se deposita pelos cantos da sala. Partículas de poeira se elevam na atmosfera formando uma nuvem de polvilho escuro.  Às vezes vou até a janela. Fico equilibrada no cabo da vassoura, vendo um recorte de mundo, algumas árvores entre os prédios, os carros na rua. Sinto um pouco de vontade de chorar. Só um pouco, pois não me sobra tempo entre as tarefas do dia.

Raquel Naveira cronicas b2714Se esse pó não fosse limpo, em breve tudo ganharia uma aparência de abandono e morte. Mas assim, tremulando no ar, parece uma onda de pólen, que é o sêmen das flores. O mesmo que aduba nossa semente, pois somos criados da poeira do chão e numerosos como grãos de areia.

Os profetas rasgavam suas roupas, se jogavam com o rosto em terra, lançavam pó sobre suas cabeças, em sinal de humildade, de clamor, de desespero, de conexão total com a miséria e com a centelha de divindade que havia neles e em nós. Sacudir a poeira das sandálias simbolizava o abandono do passado, uma ruptura completa, a negação de tudo: pátria, família, amizade. Este foi o gesto da perversa rainha Carlota Joaquina ao deixar o Brasil, num navio de volta para Portugal. Arrancou o sapato e jogou-o com fúria na orla carioca. Gritou: “Dessa terra, não quero nem o pó!”.

Somos mesmo poeira e cinza. Reconheçamos com sabedoria a precariedade de nossa existência. A cinza é o resíduo que resta após a extinção do fogo que queima carnes e florestas, sob o sol ardido de um fatídico verão.

Apesar disso, peço a vocês, meus queridos, que não me cremem. Que não destruam esse corpo que os amou, que gerou filhos e poemas, que se quebrou como vaso de barro em vários pontos. Cubram-me com um vestido de mangas longas e pintem meus lábios. Na terra do sepulcro me sepultem. Voltarei lentamente ao estado natural de pó, poeira e cinza. Não haverá necessidade de me fazerem visitas. Garanto que levantarei do túmulo sem alarme, no rastro das pétalas brancas de algum ipê.

É verdade, creiam, meu símbolo é a f|ênix, aquele pássaro venerados pelos antigos gregos, semelhante a uma águia de plumagem dourada. Quando sente a proximidade da velhice e da fraqueza, faz um ninho com plantas aromáticas, ervas mágicas e após atear-lhe fogo, instala-se no centro. Pulveriza-se. E, de repente, renasce das cinzas, renovada no ciclo de vida e morte.

Quando criança, lia Monteiro Lobato com o fôlego de uma adulta. Era apaixonada pelas travessuras da boneca Emília. Sonhava com o pó de pirlimpimpim, que ao ser aspirados me teletransportava ora para o Reino das Águas Claras, ora para a Floresta das Fadas, ora para a Grécia Mitológica. O pó de pirlimpimpim, inventado pelo Visconde de Sabugosa, soltava nossas fantasias, abria as portas da imaginação. A leitura era fonte de prazer. Hoje, será que nossas crianças bombardeadas de realidade, atingidas por balas perdidas, associariam o pó de pirlimpimpim à cocaína, aos alucinógenos, aos alcaloides, aos tóxicos, ao tráfico, ao crime? Como se afogou em pó a maldade humana.

O perturbado poeta, nosso primeiro grande poeta brasileiro, Gregório de Matos Guerra (1636-1696), o “Boca do Inferno”, em sua sensibilidade barroca de extremos e contrastes, escreveu um soneto intitulado “Moralidade sobre o Dia de Quarta-Feira de Cinzas”, em que lembra ao Homem, Lenho Mortal, que ele é terra e em terra há de tornar-se. Pó é a vil matéria de que somos formados, para nossa humilhação. E o livro de estreia de Manuel Bandeira (1886-1968) chamou-se “A Cinza das Horas”, escrito em tom fúnebre, em virtude da doença agônica que o poeta enfrentava e que o fez escrever: “Faço versos como quem morre”.

Passo o pano pelas portas e trancafio a cristaleira. Se abrirem meu peito, encontrarão um coração envolto num  borralho de cinzas. Mas bastaria um sopro de ânimo, de esperança e fagulhas reavivariam minhas coronárias. As veias ainda saltariam como brasas, sob o pó, sob tanta cinza fria.