Fonte: Raquel Naveira -
Na fazenda, eram comuns os incêndios, as queimadas. Preparava-se o trecho a ser limpo pelo fogo, delimitando-o com toras grossas de madeira e jogava-se um pedaço de brasa no meio. A terra selvagem de cerrado, recoberta de espinhos, de troncos retorcidos como chifres, de ramagens crespas, ia sendo devorada pelas labaredas que tudo convertiam em cinzas e limalhas. Era um espetáculo grandioso, digno de um louco imperador Nero tocando lira, tentando compor um poema épico sobre as ruínas e gemidos de Roma.
Mais tarde, depois do agressivo tratamento, um manto verdejante adornava o campo. Em outros pontos, plantava-se milho, feijão e arroz e a vida continuava, guardando-se águas e rebanhos de nuvens e vacas.
Que incêndio foi aquele que destruiu a cidade de Troia, narrado no poema “Eneida”, de Virgílio, o maior poeta da antiguidade clássica? Gregos e troianos entraram em guerra por causa do rapto da bela e trágica Helena, esposa do rei grego Menelau. O príncipe troiano Paris foi à Esparta em missão diplomática e apaixonou-se por ela, levando-a cativa para Troia. Os gregos, usando o estratagema do cavalo de madeira, com a barriga de carvalho recheada de soldados, penetraram na cidadela fortificada. À noite, saíram do esconderijo e tocaram fogo. Troia inteira desapareceu nas chamas, desmoronou de alto a baixo. As crepitações foram rápidas e intermitentes. As pessoas e as formigas saíram de suas casas e tocas, fervilhando, iluminadas sob as faíscas escaldantes.
No meio do turbilhão, o príncipe troiano Eneias consegue fugir. Carrega sobre os ombros a pele fulva de um leão e sobre ela, como um fardo, o corpo de seu pai, o velho Anquises. Com a outra mão segura o seu filho, o pequeno Iulo e avança através das trevas, do calor, entre as cerradas colunas dos gregos e os sopros de brisa. Seu pai e seu filho, seu passado e seu futuro, em busca de uma só salvação. “_ Que passagem! Como ilustra o amor filial”, dizia o Padre Félix Zavattaro, entre lágrimas, durante uma de suas aulas de Literatura Latina.
Todas essas cenas, como um filme, passaram pela minha cabeça, enquanto assistia pela televisão ao incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O belo palácio criado por Dom João VI em 1818, local onde moraram a imperatriz Leopoldina e D. Pedro I, onde foi assinada a declaração da Independência do Brasil, palco da primeira Assembleia Constituinte da República. Transformado em Museu de História Natural guardava fósseis, múmias, livros raros, meteoritos, mobílias, acervo engolido pelo fogo destruidor, pela cólera que dissolve invólucros e sobe aos céus. Teria sido castigo? Desleixo? Fruto de intelectos revoltados? Resultado da fragilidade dos homens, do pasto voraz dos cupins, das paredes de fios descascados, do descaso com a memória e os elos da fraternidade?
Monteiro Lobato, em novembro de 1914, publicou no jornal “O Estado de São Paulo” um artigo intitulado “Velha Praga” e, com surpresa, recebeu um punhado de cartas elogiosas. O artigo, aliás, fora uma carta endereçada à redação denunciando a calamidade dos incêndios na Serra da Mantiqueira que a tornaram um “cinzeiro imenso”, “um crepe negro”. Descreve Lobato: “... esse fogo invade a floresta e caminha por ela a dentro, ora frouxo, nas capetingas ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu”. E vai escrevendo sobre o “abrasamento implacável”, a “faina carbonizante”, enquanto o caboclo regala-se: “_Êta fogo bonito!”
A minha imaginação se exalta: vejo as Torres Gêmeas de Manhattan derretendo naquele fatídico dia 11 de setembro de 2001, num ataque terrorista que chocou o mundo; o centro de São Paulo abarrotado de edifícios, favelas e ocupações em chamas; vidros e esquadrias se estilhaçando; as forjas do deus Vulcano cuspindo facas e espadas; Lúcifer, outrora anjo de luz, precipitado no inferno. Minha garganta seca, enquanto tento pensar no fogo como purificação, regeneração e preparo para novas semeaduras.