Raquel Naveira
O gentílico de quem nasce no Estado de Mato Grosso do Sul é sul-mato-grossense. O professor Hildebrando Campestrini (1941-2016.) escreveu um extenso arrazoado justificando o termo “sul-mato-grossense” como o mais correto e estimulando também o uso do epônimo “guaicuru”. Assim como quem nasce no Espírito Santo é espírito-santense ou capixaba (palavra de origem tupi que significa “roça”); no Rio Grande do Sul é rio-grandense ou gaúcho (palavra espanhola); no Rio Grande do Norte é rio-grandense-do-norte ou potiguar (“comedor de camarão”) ou no Amazonas é amazonense e baré (nome de uma tribo indígena). O sul-mato-grossense é “guaicuru” (palavra pejorativa, cunhada pela etnia guarani para referir-se a esse grupo rival: “guá”: gente, nativo; “ai”: malvado, falso, traidor e “curu”: sarna, pele suja).
Os temidos guaicurus foram um povo indígena que viviam no Chaco, região do Pantanal e que se fundiram com os mbayás. São os ancestrais dos indígenas kadiwéus, que residem hoje na Reserva da Bodoquena e em Miranda, sul do Mato Grosso do Sul. Era uma tribo guerreira que utilizava cavalos para caçar e atacar. Aliaram-se com os paiaguás, velozes canoeiros. Dizimavam campos cultivados pelos guaranis e pelos espanhóis. Lá vinham eles pelos rios da margem do Alto Paraguai. Peritos na navegação, deslizavam feito plumas e, quando voavam no ar as flechas e azagaias do inimigo, defendiam-se tornando os cascos das canoas verdadeiros escudos giratórios.
Em 1542, o explorador espanhol Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1490-1559) chegou a Assunção para assumir o cargo de Governador do Rio da Prata e do Paraguai. Os guaranis exigiram que fosse feita guerra contra os guaicurus. Os embates foram violentos, constantes, com aldeias em fogo.
Mais tarde, em 1791, os guaicurus foram declarados súditos da Coroa Portuguesa. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) receberam armamento do Império. Lutaram lado a lado dos soldados brasileiros para expulsão dos paraguaios destas nossas terras. A eles deve-se, portanto, a soberania do nosso Estado. Eles não esmoreceram na peleja, deixando um legado de coragem. Eram mesmo soberbos, altivos, dominadores e astutos. A cavalaria lhes conferia um estilo de guerra, o amor à morte com nobreza, o confronto contra as forças do mal e contra tudo que violasse sus exigências de liberdade. Na montaria, galopando com sangue nas veias, pareciam ter saído das entranhas da terra, do ímpeto do mais forte desejo de combate.
O pintor Jean-Baptiste Debret (1768-1848) compôs uma gravura denominada “Cavaleiro Gouaycour”: um grupo guaicuru durante uma batalha. Cada guerreiro apoiado no estribo direito, segurando a crina com a mão esquerda, suspenso e deitado de lado, no sentido do corpo do cavalo, conservando-se nessa posição até chegar ao alcance da lança, quando então se erguiam subitamente em vantagem e desferiam os golpes.
Esse trabalho de Debret inspirou a pintora campo-grandense Leonor Lage (1947-2018) a resgatar e imortalizar o heroísmo dos guaicurus num monumental óleo sobre tela, que enfeita o saguão da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, o Palácio Guaicurus.
Os guaicurus passaram a atuar como vaqueiros da região pantaneira. Muitos foram os conflitos com fazendeiros que os acusavam de roubo de gado e de cavalos. Eram considerados intratáveis e de idioma enigmático.
Os kadiwéus são conhecidos como artesãos. A cerâmica guarda a mitologia, a arte e o modo de ser dessa tribo. O grafismo kadiwéu tem cores peculiares: o vermelho do urucum, o preto do jenipapo e o branco das plantas leitosas. Contornos que celebram antigas conquistas em potes, pratos e vasilhas de padrões geométricos e abstratos. As mulheres com faces pintadas comemoram a ocupação de seu espaço na sociedade, o orgulho de gravarem sua ancestralidade na argila queimada.
Em homenagem aos kadiwéus, remanescentes do povo guaicuru, escrevi o poema “Caco Kadiwéu”:
Cerâmica perfumada,
Cheiro de resina,
De lama
Que embriaga como vinho.
Cerâmica marcada
De vermelho e negro
Como um rosto guerreiro
Ou um vitral.
Cerâmica abrasada
No hálito dessa boca
Rachada nos lábios da terra
Como um vulcão.
Cerâmica Kadiwéu...
Se partíssemos esse objeto dos deuses,
De cada caco
Escorreria um pouco do sumo,
Do segredo,
Do cerne do Pantanal.