Slide

Raquel Naveira

taunay 0e18b

O Visconde de Taunay (1843-1899), considerado o precursor da Literatura Sul-Mato-Grossense, é uma figura fascinante. Nascido Alfredo d’Escragnole Taunay, filho de Félix Taunay, o Barão de Taunay e de Gabriela Hermínia. Era uma ilustre família de artistas franceses, que chegaram quando D. Pedro II queria trazer o movimento da Escola Nacional de Belas Artes para o Brasil.
Recebeu esmerada educação intelectual, ingressando, logo após o Curso de Ciências e Letras, na carreira militar.
Em 1865, como segundo-tenente, é convocado para a Guerra do Paraguai (1864-1870), maior conflito armado ocorrido na América Latina, travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta por Brasil, Argentina e Uruguai.
Retorna ao Rio de Janeiro em 1868, depois de ter participado da Expedição que se tornou famosa pelo episódio da Retirada da Laguna. Coloquei essas páginas dramáticas da história num poema intitulado “Taunay e a Retirada da Laguna”:

Quem é esse jovem
Que ama a música,
A literatura,
Tem vocação para escrivão de esquadra,
Escriba que se afoga em tinta,
Em letras góticas,
Num mar de ideias,
Garranchos,
Suores?

Seus olhos estão cheios de angústia e fadiga,
Não sabia que a carreira das armas era tão dura,
Que seria impossível atacar o Paraguai por Miranda e pelo Apa,
Adentra com o coronel Camisão o teatro da guerra,
Conduzidos pelo guia Lopes
Entre brenhas e banhados,
Chegam a Laguna:
Fome,
Fogo,
Febre,
É preciso retroceder,
Retirar não é fugir,
É preciso marchar
Léguas e léguas a pé
Na terra encharcada,
Nos atoleiros de água pútrida,
No lodo,
Carregando as macas dos coléricos.

A visão da grande serra de Maracaju,
Do rio Aquidauana cheio de jaús,
Surubins,
Pintados,
Piraputangas,
É o paraíso:
Laranjas e limões matam a sede dos ossos,
Das almas ressequidas.

Quem é esse jovem
Que escreveu tão dolorosas memórias
Entre calafrios,
Arrepios,
Pavor da morte?
Esse que registrou tudo com lirismo e sopro de epopeia?
Quem é?
É Taunay.

Foram, portanto, as contingências da Guerra do Paraguai que deram à sensibilidade de Taunay a oportunidade de observar a vida, a paisagem, os costumes da região sul do antigo Mato Grosso para escrever os seus dois principais romances: Inocência, um romance peregrino, de amor contrariado, situado na melhor ficção regionalista de todos os tempos e A Retirada da Laguna, um diário, relato pungente sobre a bravura de homens numa fantástica marcha de trinta e cinco dias. Uma batalha desigual contra o inimigo implacável e a natureza hostil, sob as ordens do comandante Carlos Morais Camisão e de José Francisco Lopes, o guia Lopes. Se houve erros de estratégia na Retirada foram todos redimidos pelo sofrimento dos soldados.

No período que esteve no sertão, Taunay apaixonou-se por uma índia da etnia chané, Antônia. Escreveu em suas Memórias, livro publicado somente cem anos depois da morte do autor: “A bela Antônia apegou-se logo a mim e ainda mais eu a ela me apeguei. Em tudo lhe achava graça, especialmente no modo ingênuo de dizer as coisas e na elegância inata dos gestos. Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época, que parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres a que mais amei.” Assim nasceu o poema “Antônia”:

Nunca vou te esquecer, meu francês
De cabelos encaracolados,
Teu jeito distante
De quem vive escrevendo,
Perdido num país de sonho. 

Não esquecerás de mim, tua Antônia,
Tua índia de ternura branda,
Cabelos negros
Que guardam os segredos das noites
Entre os morros de Aquidauana.

Ah! Meu francês,
Por tua causa
Perfumava minha pele
Com folhas de laranja
E funcho macerado,
Tudo para senti-lo dentro de mim,
Para cheirá-lo,
Para sorver de teus lábios
A saliva estonteante
Como a bebida de minha tribo.

Alfredo Taunay,
TONÉ,
Tua Antônia,
Índia chané,
Sabe pronunciar teu nome francês.

Taunay, já casado com D. Cristina, filha do Barão de Vassouras, soube, anos depois que Antônia, bonita como era, casou-se com um outro tenente e tiveram muitos filhos.

Sobre Inocência, escrevi um poema que é também um resumo da história do livro:

Sertão bruto,
Infinito,
Desafio para o espírito;
Era ali,
Naquele mar de verde pasto,
Que vivia Inocência,
Com sua beleza doente,
Seu jeito esquisito
De feiticeira do mato.

Era ali,
Entre os laranjais
De flores brancas e perfumadas,
Bem próxima ao córrego,
Que ficava sua tapera;
Na noite escura
Apenas uma vela de sebo
Iluminava o canapé de taquara
Onde ela se recostava
Num silêncio de espera.

Era ali
Que seu pai,
Com desconfiança,
Percebendo que a filha
Já não era criança,
Até nas coisas seguras
Temia a desgraça.

Era ali
Que Tico,
O anão sinistro,
Barqueiro apaixonado,
Tudo observava
Com olhos de fogo,
Pequeno demonico.
Um dia,
Apareceu Cirino,
O médico,
O doutor,
Pronto a curar com quina
E leite de jaracatiá,
Inocência entregou a ele
Sua febre,
Sua sina,
Sua fome de amar.

Havia Manecão,
O noivo ausente,
A aliança,
A promessa,
A honra,
A palavra empenhada;
Com Cirino
Era a culpa,
O desejo
E os encontros na madrugada.

Como romper valores
De um mundo cruel e atrasado?
Aos amantes restou a morte,
Total libertação.

Meyer, um naturalista
Que caçava insetos,
Viu em Inocência
Uma alma,
Uma essência,
Um ser com tão pouca consciência de si
E, ao mesmo tempo,
Tão cheia de resistência,
Que resolveu,
Para o bem da ciência,
Para vencer tanta dor e intransigência,
Tanta falta de clemência,
Batizar com o nome de “Papilio Inotentia”
Uma borboleta,
Aquela...pousada
Sobre o azul de uma hortênsia.

Taunay conheceu, portanto, os pequenos povoados, os indígenas, perfis humanos, modelando a linguagem sertaneja, utilizando em seu livro expressões como “nhor-não”, “nhor-sim”, “vassuncê”, “entonces”, “fundões”, “assuntar”, “corguinho”, “pé-rapado” e outras. Todos os personagens de Inocência são inspirados em pessoas reais: Inocência seria Jacinta Garcia, filha de João Garcia, moça de impressionante beleza, lá das paragens de Sant’Ana do Paranaíba; Pereira teria os traços do fazendeiro Manoel Coelho, em cuja casa Taunay se hospedou, quando voltava para o Rio de Janeiro e Cirino de Campos, que se fazia passar por médico, um curandeiro que ele encontrou curando o povo com “mezinhas” e placebos.

O fato é que muitos autores se inspiraram nas obras do Visconde de Taunay. O historiador, engenheiro-agrônomo e biógrafo, Otávio Gonçalves Gomes (1916-1992 , um dos compositores do hino de Mato Grosso do Sul, escreveu Mato Grosso do Sul na obra de Visconde de Taunay. Emocionante a cena quando Taunay se depara com a Serra de Maracaju, paisagem grandiosa e fantástica, com arcos naturais e maciços. Viu o sol batendo “nos píncaros e planos desnudados de vegetação de um colorido vermelho”. Descreve ainda, nas matas fechadas, os festões de flores pelos declives, pelos aparados da Serra embelezando os caminhos de antas e animais silvestres. O Morro Azul, atalaia do rio Aquidauana, “cesto de gávea avistado de todos os lados.” Quanto deslumbramento!

Outro grande admirador da obra de Visconde de Taunay foi Guimarães Rosa (1908-1967) que, no seu livro póstumo, Ave Palavra, no capítulo “Sanga Puitã”, “nome encarnado de nem vista flor”, escreveu: “De Aquidauana, sul avante, senso inverso, entramos a rodar as etapas da Retirada da Laguna”. Mais adiante: “O Apa, cor de folha, mostra seus seixos rolados no fundo. Verdadeiro e formoso, como Taunay o tratou.”

Quantas lembranças e intertextualidades! Tudo ainda está muito vivo na memória e na nossa natureza fantástica e agreste.