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Raquel Naveira

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Como esquecer os morros de Aquidauana? Essa cidade, cujo nome significa “rio estreito” em tupi-guarani, é circundada por paredões da Serra de Maracaju: o Morro do Chapéu, achatado como a copa de um chapéu de feltro marrom; o Morro do Paxixi, lugar sagrado onde os deuses indígenas choram e as lágrimas formam nascentes, corredeiras e cascatas; o Morro Azul na margem esquerda do rio, próximo ao distrito de Camisão, em plena planície pantaneira. Há ainda o Morro do Ponteiro, nos campos da Carolina e o Morro da Pirainha.

Nesse cenário único, povoado da maior concentração de aves e animais do planeta., nasceu Aglay Trindade Nantes (1934-1998), autora de um único e emblemático romance, o Morro Azul (Campo Grande/MS: Rubens Aquino, 1993). Romance memorialista, marco da literatura sul-mato-grossense. Apresenta uma galeria de heroínas corajosas, forjadas na resistência e na fé, retratadas de forma brilhante pela escritora que nos alerta que “os acontecimentos narrados, embora baseados em fatos verídicos, talvez não correspondam à verdade histórica. São apenas estórias que ouvi contar.” Aglay nos toma pelas mãos e nos faz penetrar num tempo antigo e perdido, organizando imagens do passado, reelaborando experiências, diálogos e sofrimentos. A saga daquelas famílias começara durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), esse conflito bélico envolvendo Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai e do qual o Paraguai saiu completamente derrotado. O enredo inicia com a invasão das tropas paraguaias a alguns vilarejos da região sul de Mato Grosso. Com a chegada da notícia que os paraguaios se aproximavam e eram cruéis, famílias inteiras se viram obrigadas a migrar para o Morro Azul, às margens do Rio Aquidauana, sujeitos a encontrar as tropas inimigas, feras e indígenas assustados. Sobreviveram bravamente, enquanto sonhavam em voltar para casa e reestruturar seus lares.

Papai Chico, dono da Fazenda Agachy, um homem prático e protetor, foi o líder da expedição rumo ao Morro Azul. As mulheres, Joana, Nhanhá, Ana Gertrudes, Jacinta, Ramona... representaram a força do esteio familiar. Podemos sentir a tensão daqueles momentos que antecederam a fuga neste trecho:

“Chegaram à fazenda. Chiquinho de Deus encheu a carreta com colchões, redes, sacos de sal, de farinha, de feijão, de polvilho recém-feito. À bugra da cozinha ele pediu que pegasse umas galinhas e as prendesse num jacá. Seriam usadas na dieta de Nhanhá. Não se esqueceu de apanhar a roupa das crianças e o baú onde Nhanhá guardava a roupa de cama perfumada com alfazema. Lembrou-se do pedido da mulher: a tesoura! Pegou-a junto com umas agulhas e novelos de lã que Nhanhá fiara dias antes. Ordenou aos bugres que pegassem duas vacas leiteiras e os bois-de-carro mais resistentes que encontrassem.”

A narrativa termina com a fundação da Vila de Aquidauana no dia 15 de agosto de 1892. Logo depois, começaram as atividades comerciais da famosa loja Casa Cândia, que abastecia as fazendas e que existe até hoje, tendo à frente a nonagenária senhora Jandira, irmã de Aglay e Rafael Falcão, na administração. A Casa conserva intactos todos os móveis, prateleiras, mesas, cofre. Tudo autêntico, sem nenhuma alteração. A Casa que conquistou a confiança dos fazendeiros que pagavam suas compras quando vendiam seu gado está como sempre esteve, de portas abertas a um público fiel. Jandira Trindade lançou o cativante livro “Casa Cândia-tesouros do passado, inspiração para o futuro” , com rico material fotográfico. Hoje a Casa Cândia é um ponto turístico de Anastácio, cidade vizinha de Aquidauana.

E agora, Maria Caroline Bertol Carloto Trindade Nantes, advogada e professora, nora de Aglay, casada com Max Nantes, escreve um livro infantojuvenil e poético, O Morro do Gigante (São Paulo: Minotauro, 2023). Os morros de Aquidauana estão entre o céu e a terra, são inclinações que devemos escalar para nos aproximarmos da espiritualidade e de nós mesmos. Só Deus conhece as criaturas que neles vivem, os estranhos gigantes que tocam as brumas, as nuvens e os relâmpagos. Um livro mágico que conta a história da menina-moça Maria, que, enfrentando desafios, tendo às costas uma mochila e a companhia de uma arara azul, sai ao encontro do gigante Thadeu, o guardião da serra.

Segundo tia Jandira, lá da Casa Cândia, Aglay teria testemunhado alguns acontecimentos inexplicáveis por aquelas bandas do Morro Ponteiro. Maria passa pela Fazenda Carolina observando as cachoeiras, samambaias, onças, sucuris, pinturas rupestres nas pedras. Não desiste de seus objetivos, pois escolhera a direção correta para seu crescimento pessoal. Conversa com naturalidade com o gigante que conta a ela os seus segredos e a presenteia com seu legado. Elo entre a natureza e a humanidade.

Tocante. Tantas histórias entrelaçadas nas encostas verdes esmeraldinas desses morros de Aquidauana.