Raquel Naveira
Estávamos reunidos na livraria para lermos poemas de Hilda Hilst (1930-2004). São poemas densos, que celebram o risco da própria poesia, que nos fazem mergulhar num clima de religião terrena, selvagem, nos limites da loucura e da lucidez, povoada de fantasmas do amor. Alguém começa a leitura: “Tateio. A fronte. O braço. O ombro./ O fundo sortilégio da omoplata.” Deliro no comentário: “_ A parte mais linda do homem é o ombro.” Os olhares de todos caíram sobre mim, exigindo explicação.
_ Sim, o ombro, essa articulação complexa, cheia de ligamentos, tendões, músculos, segurando os ossos desde a escápula. O ombro é lugar de refúgio, segurança. Como um pai carrega uma criança em seus ombros. Como a mulher busca proteção recostando a cabeça no ombro do homem, rendida de ternura e confiança. Ombros fortes e largos. Descanso nos ombros de quem me ama. Há duas pedras de ônix em suas ombreiras de amante e sacerdote.
Quanta dimensão espiritual nos ombros. Quantas jornadas. Sobre os ombros são depositados os desafios, as cargas emocionais, os fardos, as responsabilidades, as adversidades. Pela posição curvada dos ombros, percebemos quando uma pessoa está sobrecarregada, escondendo algo, mascarando situações difíceis. Jesus carregou nos ombros a cruz em direção ao calvário e ela perfurou sua clavícula até o sangue. Também carregou a ovelha perdida que era eu.
Que vasos de força os seus ombros, amado meu! Nunca me faltaram em todos esses anos o seu apoio, a sua amizade mais profunda. Quando nada tinha a me oferecer, você me confortou como um príncipe. Levantou-me, abraçou-me e o momento de necessidade passou. Seus braços sempre foram a minha armadura.
E agora, caminhando meio trôpegos na velhice, ouvimos a voz de Drummond (1902-1987): “Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?/ Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança.” Guerras, assaltos, terremotos, dores, desgraças, discussões e a vida sempre seguindo em frente, sempre se renovando, atropelando tudo.
Mais uma vez colocarei as mãos nos seus ombros e você beijará meu rosto. Ao redor de nós, ruínas. Mas há resignação, leveza e mal sentimos o peso.”
Diante dessas palavras, os homens da sala riram para disfarçar a descoberta, disseram que começariam a fazer ginástica, exercícios para desenvolver o bíceps com halteres. As mulheres ficaram silenciosas, com os olhos brilhantes de quem pede ajuda. A poesia de Hilda reverberou num sonho de companheirismo e intimidade dos que dormem nos ombros do divino.