Vejo-me de repente em Campinas, bela cidade paulistana, num hotel em frente à bem cuidada Praça Carlos Gomes, com imensas palmeiras imperiais e um coreto para concertos populares de bandas. Carlos Gomes (1836-1896), mestiço de sangue índio e português, conhecido aqui, sua terra natal, por Nhô Tonico, pertencia a uma família onde havia relojoeiros, encadernadores, flautistas, farmacêuticos e dois padres. Sua formação musical aconteceu no Conservatório do Rio de Janeiro. Sua trajetória foi alucinante. Vai a Milão estudar, enviado pela Coroa Brasileira, com o apoio do Imperador D. Pedro II. Criou na linha de um romantismo exótico, de temática ameríndia, a ópera “O Guarani”, que ganhou prestígio internacional. A ópera foi baseada no livro de mesmo título de José de Alencar (1829-1877).
José de Alencar, por sua vez, foi notável jurista, escritor de iluminada inteligência, reconhecido e admirado por Machado de Assis (1839-1908). José de Alencar defendia a abolição gradual dos escravos e a participação feminina na política através do voto. O capítulo inicial de O Guarani foi publicado no jornal “Diário do Rio de Janeiro”, no dia 1º de janeiro de 1857, como folhetim. Saiu como livro, ao final desse mesmo ano, com grande sucesso. Conta a história da devoção e fidelidade do índio goitacá Peri (do tupi antigo “piripiri”, uma espécie de junco) a Cecília de Mariz, a loira Ceci. Havia também o amor de Isabel, a irmã morena de Ceci, por Álvaro, que era apaixonado secretamente por Ceci. A morte acidental de uma índia aimoré por Dom Diogo e a consequente revolta e ataque dos aimorés ocorreram juntamente com uma rebelião dos homens de Dom Antônio de Mariz, liderados por Loredano, homem ambicioso que desejava saquear a casa e raptar Cecília. Álvaro se fere na batalha contra os aimorés. Isabel se mata junto ao corpo de Álvaro. Dom Antônio, um dos fundadores do Rio de Janeiro, ao perceber que não haveria condições de resistir, incumbe a Peri salvar Ceci. Os dois partem pelo rio numa pequena embarcação, com Ceci adormecida e Peri vendo ao longe a casa explodir.
Uma das cenas mais impressionantes e plásticas do livro está no capítulo “Caçada”, quando o guerreiro Peri enfrenta uma onça: “Nesse instante erguia a cabeça e fitava os olhos numa sebe. Ali, por entre as folhagens, distinguiam-se as ondulações felinas de um dorso negro, brilhante, marchetado de pardo. Era uma onça enorme, de garras apoiadas sobre um grosso ramo de árvore...Assim, durante um curto instante a fera e o selvagem mediram-se mutuamente com os olhos nos olhos um do outro.” E, mais à frente, o embate final: “...estendeu o braço e fez com a mão um gesto de rei, que rei da floresta ele era.”
De posse dessa história, Carlos Gomes concebeu uma ópera em quatro atos, num libreto em italiano escrito por Antônio Scalvani e Carlos D’Ormeville. Foi a primeira ópera brasileira a ser aclamada fora do Brasil, com estreia no dia 1º de março de 1870 no Teatro Scala de Milão, com rica orquestração, melodias integrando elementos indígenas. Obra única retratando os conflitos entre os indígenas e os colonizadores portugueses. Honra, coragem, choque de culturas, cenários de floresta. O amor entre Ceci e Peri se aprofunda, apesar das diferenças. Sucedem-se traições, disputas entre aimorés e guaranis, interesses econômicos da Espanha, desafios de obter domínio. Ceci e Peri se refugiam numa canoa unidos, triunfando sobre as adversidades. A ópera foi apresentada no Rio de Janeiro em dezembro de 1870, com D. Pedro II na plateia.
A disputa entre republicanos e monarquistas e toda a conjuntura política interferiram no julgamento artístico de Carlos Gomes. Desconsiderado, com problemas financeiros e pessoais no seu casamento, o maestro vai para Belém do Pará, onde morre em 1896, aos sessenta anos.
O povo Guarani foi um dos primeiros a serem contatados após a chegada dos europeus na América do Sul, há cerca de 500 anos. No Brasil vivem indígenas guarani em sete Estados, formando uma das etnias mais numerosas do país. Os guaranis vivem também no Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai.
Povo Guarani... grande povo. Ampla população dividida em diversos subgrupos como caiouás, mbiás, nhandevas, todos com especificidades de dialeto, culturas e atitudes diferentes diante do cosmos e seus mistérios. Eram sociedades descentralizadoras, de caçadores e agricultores seminômades, que cultivavam milho, mandioca, batata, feijão e amendoim. Habitavam casas grandes, comunais, que abrigavam muitas famílias com redes de parentesco. Alguns grupos eram antropófagos. As expedições espanholas encontraram guaranis em territórios que passaram a chamar de “províncias”, que iam da costa da cidade de São Vicente, em São Paulo, até a margem direita do Rio Paraguai e, desde o sul do Pantanal, no antigo sul do Mato Grosso, ou Lagoa de Xaraiés, até Buenos Aires. Nas uniões de espanhóis com mulheres guaranis formou-se a nação paraguaia. Ao mesmo tempo, vários indígenas foram escravizados com crueldade para os mais diversos fins.
Era imenso o “Tekoha”, o espaço dos indígenas. Essa palavra significava “boa terra”, lugar onde seria possível viver bem, plantando, criando animais, coletando frutos nas matas próximas aos córregos cristalinos. Tudo sem noção de fronteiras. Tudo “Ñ ande Retã” (“nosso país”) de diferentes paisagens a partir da Serra do Mar, a Coluna Vertebral do Universo.
Os guaranis partilhavam uma mesma língua. O “ser guarani” se resumia ao valor da palavra. A palavra que é honra e caráter. Os xamãs lideravam constantes levantes. Convenciam multidões de indígenas a alcançarem liberdade na “Terra sem Males”, dançando furiosamente no fundo das matas.
Há várias comunidades guaranis no meu Estado, o Mato Grosso do Sul. Hoje vivem em reservas, acampamentos à beira das rodovias, em barracos de lona, papelão e lata. Espaços isolados, vendendo artesanato, cestaria, colares e frutos silvestres.
Num ambiente de resistência dos indígenas à opressão, o marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) vislumbrou uma alternativa da política do possível, criando entre 1915 e 1928, oito reservas: Dourados, Amambai, Limão Verde, Caarapó, Taquaperi, Sossoró, Pirajuí, Porto Lindo. Nova área foi demarcada na Aldeia Jaguari, mas as lutas não cessam. A situação é de alarmante guerra. De um lado, proprietários titulados pelo próprio Estado, há mais de um século. De outro, indígenas reivindicando retomadas. O roto tecido social se rompendo cada vez mais, sem paz nem segurança. Segundo pesquisas do Dr. Nery da Costa Jr, autor do livro de memórias Che Tiempo Guaré, título que une os dois idiomas, espanhol e guarani e significa algo como “Meus Doces Tempos”, as mulheres se queixam de violência doméstica, inclusive por parte das lideranças das aldeias; abuso de bebidas alcoólicas; indígenas que estupram até mesmo crianças e idosas; meninas adolescentes que são levadas por homens da cidade e voltam grávidas para as aldeias onde são jogadas e rejeitadas; adolescentes assassinados na beira das estradas. O mal só faz crescer.
A força e a esperança estão na língua guarani, a língua mãe que dá noção de identidade, de ancestralidade. Nos indígenas que seguem ensinando suas crianças a falarem na língua nativa e não a perdem jamais de vista. Que ensinam sobre o passado doloroso dos indígenas e transformam dor em caminho no embate permanente entre aldeia e cidade.
Os brasileiros vivem entrelaçados com a presença de nomes indígenas para cidades, plantas, rios, peixes, aves, esculturas, quadros. O Guarani é livro de José de Alencar. É ópera de Carlos Gomes. Tudo isso deveria ser motivo de glória e união, no dia em que atingíssemos maturidade política, social e humana. Reflito em tudo isso, enquanto balançam as folhas das palmeiras imperiais da Praça Carlos Gomes.