Raquel Naveira
Vó Emília, diante da pobreza e do infortúnio do abandono do pai, que seguira a Coluna Prestes, mudou com a mãe para Campo Grande. Vieram morar com tia Antônia, a irmã mais velha, casada com o Barbosa, um viúvo que tinha onze filhos. Mais dez do casal, foram vinte e um filhos no total. Lembro-me de tia Antônia bem velhinha, com sua cara de índia, sulcada de rugas fundas, enrolando fumo na palha, contando histórias, tão sofrida...
Numa tarde de domingo, vó Emília foi passear com sua amiga portuguesa, Alcmena, na praça da 14 de Julho. O vestido de seda creme, o longo colar de pérolas, o cabelo curtinho com um pega-rapaz na testa, o ar de melindrosa, ficaram registrados na foto tirada por um lambe-lambe, aquele fotógrafo atrás do forro negro da câmera apoiada num tripé, fazendo a mágica de prender corpo e rosto no acetato da memória. Estavam andando em volta do coreto, quando se aproximaram aqueles dois moços também portugueses: um de olhos verdes e terno de linho branco, era meu avô José e o outro, um pouco mais baixo, usando palheta, tio Horácio. Meu avô José foi até um canteiro, arrancou um flor em forma de chuvisco de plumas e a entregou àquela moça de personalidade ao mesmo tempo meiga e ousada. Horácio repetiu o gesto e entregou um chuvisco à rude Alcmena.
Em seis meses estavam os quatro com o casamento marcado para o mesmo dia, pois não havia porque adiar o começo de uma vida de jovens que só tinham por dote o gosto pelo trabalho, a possibilidade de futuro e os votos de uma aliança de lealdade. Amor é isso. Lealdade absoluta. A lealdade não passa nunca. Sempre contei com a lealdade que meus avós tinham um pelo outro e pela família. Poderia acertar meu relógio por eles. Isso é amor, ainda que não pareça empolgante.
Naquela hora em que meu avô José entregou o chuvisco de plumas do cerrado à minha avó, deve ter pensado que ela era uma mulher adorável, constante, que seria sua como ele seria dela, para sempre. Foi um bom casamento, sem dúvida. Escolheram um ao outro para o resto da vida, uma vida longa, cheia de acidentes, suficiente para que um compreendesse o outro, com compaixão e assistência mútua. Não havia aplausos. Ninguém aplaude uma árvore. Houve silêncio e sombra. Troncos separados, mas raízes e galhos entrelaçados.
Houve ameaças de tristeza nesse casamento. Enquanto tia Alcmena dava à luz a cada ano bebês lindos e rechonchudos que corriam depois pelos trilhos da Estação, onde tio Horácio trabalhava, vó Emília sofria a desilusão da esterilidade. Sabia que às escondidas a chamavam de “machorra” e de “figueira seca”. Foram dez anos de choro e vergonha. Vó Emília implorava a Deus um filho. Lembrava-se de Isabel, mãe do profeta João Batista, que gerou um filho em idade avançada; em Sara, mãe de Isaque, cuja descendência foi maior que o número das estrelas e do cântico de Ana, mãe de Samuel. Sua fé parecia-lhe inoperante para mover as forças divinas e ela pedia baixinho, parecendo bêbada, esvaindo-se em mágoa.
Foi em 1936 que a Providência enviou a Campo Grande, o Dr. Ari Coelho, formado na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, especializado em cirurgia. Dr. Ari construiu o primeiro hospital particular da cidade, a Casa de Saúde de Santa Maria, nos altos da Avenida Afonso Pena, em frente do obelisco. Sua fama de excelente médico logo se espalhou pela cidade e vó Emília o procurou, cheia de esperança e “quem tem esperança tem tudo”, dizia o antigo provérbio árabe. O médico diagnosticou o problema: útero virado. Seria necessário um pequeno procedimento cirúrgico doloroso, sem anestesia, para colocá-lo no lugar. Minha avó submeteu-se e veio a gravidez de sua primeira e única filha, minha mãe. Parto difícil, em meio a hemorragia que não estancava e febre alta. Dr. Ari explicara que o útero voltara à sua posição original e que, devido à delicadeza de sua saúde, outra gravidez não deveria ser forçada. Minha avó aceitou o veredicto médico com a filha Marlene, tão desejada, nos braços: loura e de olhos verdes como o pai. O centro de sua vida a partir daquele momento.
Sua gratidão ao Dr. Ari era imensa e lamentava sempre o seu estúpido assassinato. Parece ter sido um pistoleiro de aluguel. Até hoje pairam dúvidas. Pergunta-se: a quem interessava a morte do Dr. Ari, naquela fatídica manhã de 21 de novembro de 1952? Terá sido um crime premeditado? Teria havido uma grande conspiração? A quem interessaria a morte de um político que acelerava a marcha para quebrar o ciclo de revezamento no poder local? O sangue do Dr. Ari representou quase meio século de atraso na política de Mato Grosso, mas sua honra e sua imagem não foram atingidas, ao contrário, ainda hoje é pranteado pelo povo como um ídolo. Vó Emília contava sempre como a cidade tinha parado com a confirmação da morte do Dr. Ari. A população foi tomada de tristeza e revolta. Dia sombrio, de chuva fina, de silêncio e soluços, o povo altivo percorrendo a pé as ruas de terra cascalhadas, acompanhando seu líder em sua última viagem, com pesar por sua partida. Dr. Ari virou nome da principal praça da cidade e sua estátua saúda os que chegam a Campo Grande num gesto que se assemelha a um abraço.
Algo me incomodava em vó Emília: a sua falta de perdão. Ela se orgulhava de ser uma pessoa que não se “esquecia” de nada, que nunca perdoava. Principalmente os que ousaram de alguma forma prejudicar sua filha. O principal alvo de sua ira era meu pai. Aquele que trouxera a infelicidade de um mau matrimônio. Eu me sentia oprimida com suas declarações. Havia em mim um fascínio de identificação com meu pai e o ódio era pesado demais. Eu intuía que aquela era uma forma errada e cruel de conduzir a situação. Que temos sim de aprender a esquecer as coisas que atrás ficaram para prosseguir para a meta. Há que se apagar tudo. Perdoar aos outros e a si próprio. Perdoar e esquecer são atitudes que andam de mãos dadas. A falta de perdão de minha avó Emília impediu-a de crescer mais espiritualmente. Foi uma defesa, um equívoco de sua maternidade absorvente e protetora, porque, por outro lado, era cheia de coragem, de senso de responsabilidade, de cuidados que chegavam às raias do zelo. Com os horários, a limpeza da casa, a alimentação, os detalhes da vida do dia-a-dia, tudo aquilo que sustenta os pilares do mundo.
A flor predileta de minha avó Emília era a violeta roxa, cor da temperança, feita de uma proporção igual de vermelho e azul, de equilíbrio entre a terra e o céu. A violeta transmitia-lhe humildade, dizia ela, nasce tão pequenina e úmida entre as raízes de altas árvores, sugando-lhes a seiva. Cultivava vários vasos de violetas sobre o mármore branco da mesinha de centro da sala. Numa festa que ela organizou para amigas de um clube feminino que trabalhava numa campanha de conscientização contra o câncer de mama, ela doou a cada uma um perfume numa capinha de seda roxa arrematada por um buquê de violetas de cetim. Ficamos dias ajudando a confeccionar o mimo. Hoje, basta ver uma violeta para me lembrar de minha avó Emília, de sua passagem outonal da vida à morte. Para ela, escrevi o poema “Violeta”:
Estou em perigo:
Uma angústia,
Um desejo de morrer,
Minhas pétalas murcham
Num roxo mortiço,
Perco o viço,
De amor tão intenso
Desfaleço.
Estou em perigo:
Uma felicidade,
Um deleite,
Minhas raízes sugam húmus,
Encharcam-se,
Amoleço.
Estou em perigo,
Nada no mundo me vale nesse transe,
Num jardim cheio de sombras
Permaneço.
Sem encontrar apoio na terra,
Sem poder subir a o céu,
Vivo frágil,
Presa num caule suspenso.