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Geraldo Nunes

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Três lojas de discos chamavam a atenção de quem passava na Rua 24 de Maio na década de 1970. Eram elas a Brenno Rossi, Bruno Blois e Casa Manon que também dispunha aos clientes partituras e instrumentos musicais. Nesse tempo a decadência já ameaçava o centro de São Paulo, mas ainda havia algum brilho e glamour naquele caminho entre a Praça da República e o Teatro Municipal.

São lembranças da fase de adolescente que se reavivaram em 1995, quando entrevistamos Waldemar Rossi, um dos proprietários da loja de discos Brenno Rossi, para o programa São Paulo de Todos os Tempos que era gravado durante a semana e levado ao ar aos domingos pela Rádio Eldorado.

O Sr. Rossi estava em pleno vigor, lúcido e falante em seus 88 anos. Chegou e foi explicando que a loja Brenno Rossi, levava o nome do irmão dele fundador da casa e já falecido. Outro irmão era Spartacco Rossi, maestro, arranjador e compositor da Canção do Expedicionário, cuja letra coube ao poeta Guilherme de Almeida. “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra sem que volte para lá...”

Nascido na capital paulista, em 1907, Waldemar Rossi era dono de uma memória invejável. Na entrevista que voltei a ouvir para redigir esse texto, o comerciante conta que quando menino brincou debaixo das estruturas do primitivo Viaduto do Chá sustentado por vigas metálicas e coberto por madeiras que balançavam ao passar dos bondes elétricos. Na sua infância, o Anhangabaú corria a céu aberto ao lado das plantações de chá que deram nome ao lugar. “As águas eram limpas, eu via peixinhos nadando, aquilo para um menino era uma maravilha”.

Apesar da pouca idade que tinha, o Sr. Rossi disse se lembrar do alvoroço que foi a inauguração do Teatro Municipal, em 1911. Era o assunto de todas as pessoas pela expectativa que causou. Mais crescido acompanhou de perto, levado pela curiosidade dele e dos amigos, às obras de construção do Edifício Martinelli iniciadas em 1916. “Diziam que um prédio tão alto não ficaria de pé por muito tempo, cairia logo depois, porque durante a construção, água começou brotar nas fundações e o problema demorou para ser resolvido. Aos garotos da minha idade, aquilo tudo era um festival de acontecimentos”.
Waldemar e seus dois irmãos, esperavam a semana toda pelo domingo, dia em que os pais os levavam para brincar e mergulhar nos cochos de algum clube à beira do Rio Tietê, então completamente limpo. Ao ouvir essas histórias de uma São Paulo tão antiga, a impressão que se tinha era da existência de uma outra cidade e não São Paulo.

Filho de italianos, Waldemar começou a gostar de música bem cedo. Seu pai era um dos sócios da Casa Beethoven, especializada na venda de partituras importadas da Europa e os grandes instrumentistas da época procuravam sua residência para obter antes as novidades vindas da Europa, entre outros, Francisco Miglione, um dos fundadores da Orquestra Sinfônica de São Paulo. Ali mesmo na sala, junto à família, o maestro dedilhava ao piano o que de mais novo surgia. “O irmão dele, Domingos Miglione, também era pianista e foi sócio do meu pai na loja localizada na Rua Direita”.

Waldemar Rossi fez o curso primário em um grupo escolar da Rua das Flores de onde dava para ver a futura Catedral da Sé sendo construída. Dona Aurora foi sua primeira professora, “uma mulher amorosa com as crianças que jamais fez uso da palmatória, permitida naqueles tempos”. Salientou o lojista que o diretor de sua escola era o Dr. Frontino Guimarães, respeitado educador que hoje dá nome a uma rua na Vila Mariana e a uma escola estadual no bairro de Santana. “Todos os dias antes das aulas ficávamos em fila para cantar marchas militares porque o hino nacional brasileiro ainda não tinha uma letra oficial”.

De “office-boy” a dono de loja

Outra fase das recordações se dá no ano de 1918, quando o córrego Anhangabaú foi inteiramente canalizado. “Nunca mais pude ver os peixinhos nadando naquelas águas claras que tanta alegria me davam, uma referência para mim do que ficou minha infância confinada para sempre”. Aquele foi também o ano da gripe espanhola que matou muita gente. “O cemitério São Paulo é dessa época, foi inaugurado às pressas porque já não havia mais lugar para tantos sepultamentos e até os coveiros infectados pela doença começaram morrer”.

Na casa do menino Waldemar Rossi, ele e os irmãos foram obrigados a tomar "Emulsão Scotch", um remédio de sabor horrível à base de óleo de fígado de bacalhau e totalmente amargo. “Acredito que graças ao medicamento não contraí a gripe assim como nenhum dos meus irmãos”.

Assim que completou 12 anos de idade começou a trabalhar, porque este era um costume da época e quem não começasse até no máximo 14 anos, ficava malvisto. "Meus pais me orientaram como tirar a ‘carteira de menor’ e saí procurando emprego de porta em porta". Seu primeiro trabalho foi de contínuo externo, função mais tarde atribuída aos “office-boys”. Passou a ir aos bancos pagar contas, levar correspondências aos escritórios e assim começou a conhecer a cidade. “Ver as vitrines iluminadas para mim era algo maravilhoso porque a eletricidade era ainda um requinte caro que só algumas lojas conseguiam ter”.

Entre as mais luxuosas estavam estava a Mappin Stores e Mappin Webb, a primeira de departamentos e a outra, unicamente de cristais e prataria inglesa da mais alta qualidade. Uma funcionava vizinha à outra, na Rua 15 de Novembro, a mais requintada do triângulo histórico da qual fazem parte também as ruas Direita e São Bento.

Na entrevista, o senhor Rossi procurou justificar a escolha para o trabalho de contínuo, mesmo convivendo com a música. “Eu aprendi tocar piano, mas não me sentia um instrumentista de talento, ao contrário do meu irmão Spartaco que se tornou multi-instrumentista e compunha muito bem”.

Depois se tornou comerciante como o pai, foi quando conheceu quase todos os integrantes do movimento modernista que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922. “Foi neste ano que o meu irmão Brenno Rossi abriu sua primeira loja de partituras na rua Marconi, um lugar ainda novo para o comércio, mas emergente, por estar situado do outro lado do Viaduto do Chá”.

Só depois do surgimento do rádio e sua popularização, a partir da década de 1930, é que a Loja Brenno Rossi passou a comercializar, além das partituras, discos e gramofones. O movimento cresceu e o jovem Waldemar Rossi, convidado pelo irmão a trabalhar com ele, deixou o emprego de contínuo. O escritor e poeta Menotti Del Picchia e a artista plástica Anita Malfatti se tornaram clientes fiéis. “Por serem apaixonados por música visitavam nossa loja semanalmente para saber das novidades e adquirir discos”, revelou o senhor Rossi ao acrescentar: “Anita era a mais famosa entre os modernistas porque o pai dela, italiano naturalizado brasileiro chamado Samuele Malfatti se elegeu deputado estadual pelo PRP - Partido Republicano Paulista”. O senhor Rossi contou também que os demais modernistas viviam praticamente no anonimato, exceção a Mário de Andrade que na década de 1930, ocupou um cargo público na prefeitura. O reconhecimento da Semana de Arte Moderna veio somente depois com o passar dos anos”, enfatizou.

O fim das lojas de discos

O irmão Brenno Rossi morreu cedo e Waldemar ocupou seu lugar nos negócios da loja que fez outros sócios quando passou a vender, além de discos, aparelhos de som de “Alta-Fidelidade”. Foi quando a casa se mudou para a Rua 24 de Maio na década de 1950 e ali funcionou por mais de quarenta anos.

Quando surgiram os CDs, as gravadoras passaram a fazer vendas consignadas aos grandes atacadistas como Carrefour, Extra e Lojas Americanas a preços mais baixos para o consumidor. Isto matou as lojas de discos a partir do início dos anos 2000.

Ninguém imaginava que o avanço da tecnologia levaria a própria indústria fonográfica a entrar em colapso, a impressão dos discos em vinil e mesmo dos CDs e DVDs, praticamente não existe mais. “Streaming” é o nome que se dá agora às transmissões de conteúdo online que nos permite ouvir músicas, assistir filmes ou séries até mesmo pelo telefone celular.

Com o fim da loja de discos Brenno Rossi, perdemos o contato com o senhor Waldemar Rossi que, obviamente pelo passar dos anos, já não está mais em nosso convívio. Ficaram dele as lembranças a esse repórter dessa entrevista memorável e alguns long-plays que guardo comigo com o selo da Brenno Rossi dos anos 1970.

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Geraldo Nunes, é o jornalista, escritor e radialista que ocupa a cadeira 27 da Academia Cristã de Letras - ACL