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Luiz Eduardo Pesce de Arruda

foto arruda ab5fe

Naquela manhã friorenta, cheguei em cima da hora. A inspetora Neide, o seu Armando sacristão e o Julião estavam a postos. Disse um bom dia corrido e entrei. 

Passando pelos corredores revestidos de creme, o piso imaculadamente limpo, observei as caixinhas que representavam a libertação ou a retenção de nossa geração. Dentro delas, ordenadamente dispostas, as cadernetas azuis onde se carimbava “presença” ou “falta”. Aquilo definiria se estaríamos aptos, no final do ano, a sermos ou não promovidos.

Cheguei à sala de aula, no segundo andar do prédio.  A sala era ampla, com um pé direito alto e janelas estrategicamente concebidas, que permitiam que a luz do sol entrasse e o ambiente, ainda assim, permanecesse ventilado.

Curiosamente, as aulas não respeitavam séries nem ciclos, elas se sucediam e tudo se encadeava. Na primeira aula, o professor Leonaldo falou-nos sobre lógica matemática. Na segunda, a fórmula de Báscara (B2 menos 4AC sobre 2A) com o professor Carminatti. No dia seguinte, teríamos matemática com o Professor Padovani e com o professor Roberto.

Na terceira, as meninas tiveram artes com dona Elza, onde aprenderam tricô, ponto em cruz e a fazer roupinhas de bebê.  Em suas aulas, ela falava de eugenia feminina e ensinava às meninas como cuidar de um bebê e o valor do uso do absorvente Modess, assunto tabu àquela época, que as meninas nunca comentavam conosco. 

Nós, os meninos, fomos para a oficina, aprender a cortar, lixar e esculpir madeira, fazer ligações elétricas, trabalhar com couro, cortar lata e soldar até fabricarmos um carrinho ou um patinho de rodinhas que abria as asas, com o professor Dirçon Kammer. 

Na aula de argila, quando tínhamos de modelar uma ânfora, dois do grupo resolveram modelar uma escultura natural, em forma de espiral, com direito a feijão e milho aparentes. A escultura foi orgulhosamente depositada sobre a mesa do professor que, inconformado, chamou o seu Armando para vir remover a porquice com balde e escovão. Não foi necessário, mas o senso de humor e a habilidade artística dos escultures não foi exatamente reconhecida pelo Mestre, naquele momento. Só muitos anos depois.

Elza também era o nome de nossa professora de inglês que fumava muito e era de uma bondade extrema. À frente de seu tempo, inovadora em seu método de ensino, trazia debaixo do braço uma vitrola pesada, que a fazia suspirar, e discos, muitos discos, ensinando-nos ludicamente a traduzir, a partir de Morris Albert, Marmalades ou Elton John. Os os Pholhas. Ou os Beatles:

Oh, my sorrows

Sad tomorrows

Take me back to my own home

Oh, my crying (oh, my crying)

Feel I'm dying, dying

Take me back to my own home

Na quarta aula, o Assis Brasil Favaretto nos falou sobre o potencial hidrogeniônico e nos ensinou a fazer shampoo. No intervalo, pão com manteiga embrulhado em guardanapo de pano, banana e água do bebedouro. Ficava encantado quando o Paulo Severino desembrulhava seu sanduiche do papel alumínio e o misto ainda estava quente.

Na quinta aula, história com a professora Célia, esposa do doutor Alcides e mãe do Heitor.

Naquele dia, não houve pausa. A próxima aula foi com dona Autinha, de português. A seguir, dona Irma Cressoni, que nos ensinou como deveríamos nos comportar e saudar, caso o presidente Pompidou adentrasse à sala de aula. Sua paixão pela língua era tão contagiante que ficamos na espreita, esperando o presidente da França abrir a porta da sala.

Veio depois a dona Odila, falando de movimento uniformemente variado, a professora Ivany Figueiredo, gentileza e firmeza em pessoa e o professor Alcyr Mathiesen, que desenhou a mão livre um gafanhoto na lousa, tão perfeito que parecia que iria pular sobre nós. Ficamos todos estupefatos.

Seguiram as aulas com o professor Toninho Rodini, artista multitalentoso, a professora Zilah Ramos, ensinando como funcionava o Congresso Nacional em OSPB, o professor Norberto e o professor José Carlos, que nos ensinavam os três passos do handebol e os passes de peito do basquete, as regras do atletismo e da ginástica rítmica, tudo isso em uma escola pública. Quando possível, durante a aula, olhávamos de soslaio para nossas coleguinhas, em aula com dona Adélia, lindas em sua singeleza, cabelos presos em coque ou rabo de cavalo, e que vestiam camiseta branca e shortões vermelhos de elástico.

Veio dona Teresinha Ulson, que nos ensinavam os planos geométricos e exigia um caderno limpo e com bordas impecavelmente desenhadas. Desenhei uma borda, furei 100 folhas com o compasso e uni os pontos. Nada mal, pensei. Pena que ela não partilhou de meu gosto estético e me fez refazer o caderno inteiro. E com capricho. 

A aula seguiu com o Antônio Sastre, que nos falou dos dilemas da história, permitindo que visitássemos no sábado, com ele, um sítio paleontológico na estrada Limeira - Rio Claro.

Depois foi a vez da professora Regina Dalva, acolhedora e refinada,  nos ensinar Antero de Quental, Gil Vicente, Alexandre Herculano e até literatura medieval, aumentando - assim acreditávamos - nosso repertório poético para tentar (em vão) encantar as meninas:

“Senhor fremosa, pois me aqui

U vos vejo, tanto mal vem

Dizede me vós, uã rem

Por Deus, o que será de mi?

Quando meu hora, minha Senhor,

Fremosa du vos sodes for?”

Na próxima aula, a professora Margarida Harter, gentil e encantadora, nos apresentou aos psitacídeos e aos quirópteros e a professora Clotilde Russo nos ensinou que “música é a arte de se expressar por meios de sons (notas). A música pode ser gravada na pauta ou pentagrama”. E a cantar corretamente o Hino Nacional Brasileiro, para nunca passarmos vergonha. 

Veio a aula de dona Sirley Franzini, amorosa, brilhante, desafiadora, nos levando em sonho a passear por San Marino, por Mônaco, pela China e pelo Parthenon, pelo Taj Mahal e pela Catedral de São Basílio em Moscou, pelos prados de Montana, pelas savanas da África e pelas montanhas nevadas do Himalaia. Ela nos desafiou a descobrir um mundo múltiplo, que começava, sim, na via Anhanguera, mas que ia muito além do Leme ou de Limeira.

A aula acabou. Depois de definirmos se iriamos fazer lição, nadar na piscina do Domingos Graziano ou jogar bola na Piscina (nome que dávamos à Associação Atlética Ararense) saíamos em grupo, caminhando pela rua Júlio Mesquita. A caminho de casa, quase defronte à Pessotto Ótica e ao Saito, paramos para tomar picolé de uvaia – nesse dia exageramos e tomamos mais um copinho de sorvete de coco e mel de massa, em uma pequena sorveteria recém inaugurada, e que por isso mesmo ganhou nome de “Nova”. Era uma portinha e o Sérgio, um menino, preparava sorvete, brincava com os clientes, limpava o chão, servia o balcão e cobrava. Ou anotava, para os felizardos que tinham crédito. E sonhava com o dia em que sua sorveteria iria se expandir, até se transformar em uma indústria.

Nosso uniforme – camisa branca, com o brasão da EEPSG Cesário Coimbra bordado no bolso, a calça (ou saia) cinza, a todos nos igualava. 

A vida nos empurrou para rumos diversos, mas o “Cesário”, meio século depois ainda nos atrai poderosamente. Acho que um pedaço de nossos corações ficou lá, plantado junto à caixa de areia onde fazíamos salto em altura.

Somos muito do que nossos mestres e mestras nos fizeram. A bem da verdade, cada um de nós é a amálgama de todos eles.  

E quando me vejo, e a meus colegas, meninos e meninas de cinquenta anos atrás, sinto que somos pessoas privilegiadas, que, como seres humanos, dotados de dignidade e livre arbítrio, foram modelados pelas próprias mãos de Deus, fruto do milagre da vida, trazidos ao mundo pelos nossos pais, mas lapidados, como um diamante bruto, por uma gota de amor de cada um deles, nosso Mestres de ciência e Vida.

São Paulo, 15 de outubro de 2024, 17:10h