Das montanhas mineiras desceram brumas, uma cerração densa, turva, novelos de fumaça. A falta de nitidez e de certezas era uma névoa pairando sobre as águas. À tarde, quando o sol afastou a neblina e cozinhou o pó preto misturado a ligas de alumínio, aconteceu o desastre: a barragem do córrego se rompeu. Um mar de lama avançou sobre casas, árvores, rios, animais. Sobre pessoas que se sentavam à mesa para o almoço, outras que deitavam nos leitos fofos das Pousadas ou que entravam num ônibus que percorreria as vias do minério. Como as lavas de um vulcão raivoso, o magma de rejeitos rolava com suas bolhas de dano e morte.
Almas soterradas sob a lama. Alma/lama. Temos aí um caso de anagrama. Uma palavra contém a outra. A diferença é apenas a disposição de uma letra. De uma asa que vivificou a lama. A lama é símbolo da matéria primordial e fecunda da qual tudo foi tirado. É misto de terra e água. Quando terra que se agita e fermenta, é plástica, evolutiva. Dali saíram insetos, mamíferos, moluscos, seres viventes. Quando água que fica poluída, contaminada, é escória, degradação moral. O homem, alma e lama, pode alcançar píncaros de altitude espiritual e descer a abismos de corrupção. Céu e inferno.
Quais teriam sido as causas dessa tragédia, três anos depois de um crime semelhante? A exploração interminável do ferro cantada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade? No poema “Confidência do Itabirano”, ele escreveu: “... nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro./ Noventa por cento de ferro nas calçadas./ Oitenta por cento de ferro nas almas.” A necessidade de retorno financeiro, lucro máximo para os acionistas da empresa? As oscilações da Bolsa de Valores pelo mundo e pelo sistema? A irresponsabilidade dos executivos frios, sem compromisso com as comunidades? O desleixo e despreparo dos engenheiros que criam muros para conter o lixo químico, tóxico, voltado de boca para o espaço cósmico?
Soldados rastejam na lama à procura de vítimas. Parecem estranhos caranguejos. João Cabral de Melo Neto no longo poema “O Cão sem Plumas” descreveu a nordestina Recife passada pelo rio “como uma rua/ é passada por um cachorro”, “a paisagem de homens plantados na lama;/ de casas de lama/ plantadas em ilhas/ coaguladas na lama;/ paisagem de anfíbios/ de lama e lama.” E constata, perplexo, que é difícil saber “onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.”
O poeta Carlos Nejar, aterrado com a tragédia acontecida nas proximidades de Mariana, concebeu um livro épico, homérico, de dísticos fortes, intitulado A Vida de um Rio Morto: monumento ao Rio Doce. Como epígrafe, um verso de Augusto dos Anjos: “Acostuma-te à lama que te espera!” Em meio à miséria, vê crianças famintas que comem barro, com suas barrigas enormes. E também “o barro, já sem renome que a todas as crianças, de manso, come.” Observando aquela poética cidade colonial, espanta-se: “No terror, de horda em horda?/ A lama subindo as calhas.” O barro espesso escorando a memória.
Fecho os olhos. Pesadelo. A lama assassina borbulha à minha volta. Súbito, a alma voa como borboleta, sobre o pântano que fumega.