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A concepção de Jesus, Homem e Deus, por uma virgem, Maria, é um dos mistérios da fé cristã. CONCEIÇÃO é o nome de dois ícones da cultura sul-mato-grossense: CONCEIÇÃO FERREIRA, precursora do teatro e CONCEIÇÃO DOS BUGRES, a escultora.

           CONCEIÇÃO FERREIRA foi uma atriz portuguesa, nascida na aldeia de Lardosa, em 1904. Estudou Arte Dramática no “Conservatório Gil Vicente”, em Lisboa. Veio para o Brasil em 1924, primeiramente para o Rio de Janeiro, onde estreou no Teatro Recreio, ao lado de Henriqueta Brieba. Ingressou na Companhia Teatral Oduvaldo Viana e depois na Companhia Teatral Maria Castro, viajando por todo norte e nordeste. Chegou a Mato Grosso em 1928. Percorreu as cidades de Aquidauana, Miranda, Corumbá, Cáceres, Cuiabá, Três Lagoas, Campo Grande, Ponta Porã e adentrou o Paraguai.

            Recebeu então um convite para filmar “Alma do Brasil”, primeira produção cinematográfica do Estado, sobre a Guerra do Paraguai, direção de Libero Luxardo e Alexandre Wulfes.

            Resolve residir definitivamente em Campo Grande, reunindo um grupo de jovens da sociedade local para formar uma pequena companhia de teatro. Os ensaios aconteciam na residência do maestro Emidgio Campos Vidal e as apresentações no antigo Cine Trianon. Conceição foi também apresentadora da Rádio Difusora de Campo Grande, PRI-7. Viúva, mudou-se para São Paulo, mas vinha sempre a Campo Grande, onde tinha um filho.  Faleceu em 1992, em Campo Grande, cansada e esquecida.

            Quando pequena, eu ouvia muito falar dela e de seu marido, José Ferreira, que eram amigos e “patrícios” de meus avós portugueses. Depois, só tornei a vê-la no teatro Glauce Rocha, em meados de 90, na noite do lançamento do livro “Alma do Brasil”, de autoria do advogado e folclorista, José Octavio Guizzo. O livro é um relato de como aconteceram as filmagens dessa epopeia sul-mato-grossense sobre o episódio da Retirada da Laguna. Foi uma noite de glória. Conceição, velhinha, magra e faceira, muito pintada, envolta num xale de seda de fundo negro estampado de flores, subiu ao palco e foi aplaudida de pé, o auditório veio abaixo. Comovente a cena da mãe com seu filhinho, num incêndio da macega, protagonizada por Conceição.

             Mais tarde, minha tia Nicota, de Bela Vista, contou-me um fato inusitado:  quando a companhia teatral passava por aquela cidade, à beira do rio Apa, fronteira do Paraguai, os meninos saíam gritando pelas ruas, numa entonação dramática: “Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira!”. Imagino o caminhão tosco, levando estrados, cortinas, baús pesados. Preparavam a sala do cinema com cadeiras, bancos, lugar para o coro, para o piano e o fagote. Nos cantos, lampiões bojudos, de gás amarelo, chupavam mariposas. O espetáculo era às vezes uma opereta, uma peça sobre alguma mártir dolorosa ou uma comédia à La Garçonne. O importante era ver Conceição cantando, misto de bailarina e borboleta.  E eram trazidas máscaras, cabeleiras, coturnos, túnicas, barbas falsas, telas enroladas de cenários. Espalhava-se incenso no ar seco de mato. Teatro, sabiam, é tudo miragem, ilusão, fingimento, imitação, mas parecia tão verdadeira aquela história da cabocla bonita... Conceição virou fantoche no palco do mundo, mas aqui, bem na alma do Brasil, no centro-oeste, onde pulsa o coração, ainda se ouve o apelo: “_Hoje tem espetáculo Conceição Ferreira.”

CONCEIÇÃO FREITAS DA SILVA, a CONCEIÇÃO DOS BUGRES, nasceu no Rio Grande do Sul, na localidade de Povinho de Santiago, em 1914. Aos seis anos mudou-se para o Mato Grosso, morando depois em Campo Grande, onde faleceu em 1984.

            A cultura sul-mato-grossense foi profundamente marcada por essa escultora primitiva, mulher rude e pobre, de mãos toscas, cheias de veias que se confundiam com a madeira, com a cera das abelhas. OsConceição dos Bugres 8e54fConceição dos Bugres bugrinhos que criava eram retangulares, cabeças chatas, braços semelhantes a asas curtas e pés esparramados. Tinham vida, expressão no olhar, nas barriguinhas estufadas. Tornaram-se verdadeiros ícones de nosso Estado, totens de nossa identidade cultural.

            Conheci Conceição há mais de quarenta anos, numa tarde de sábado. Fomos, uma turma de moços, ver o seu trabalho. Ela nos atendeu com seu jeito tímido, os longos cabelos grisalhos amarrados no meio das costas, o vestido puído de chita florida. Levou-nos à pecinha de madeira, de chão de serragem, onde colocava os bugrinhos em prateleiras. Pegava-os como se fossem seus filhos, recém-saídos do ventre da terra, feitos de raízes de mandioca.

            Como eu era jovem naquele tempo! Nem sei se tive a visão da importância daquele momento, da grandeza daquela artista. O certo é que nunca esqueci daquela tarde de sábado. Da cerca de arame farpado em volta do terreno áspero de cerrado, sem nenhuma árvore. Nem do sol que mergulhava vermelho no lago do Amor. Nem do seu corpo franzino, desconjuntado no trabalho pesado. Nem do formão que ia arrancando lascas, faíscas e sonhos dos pequenos troncos.

            Visitando o Museu do Folclore, que fica ao lado do Museu da República, no  Rio de Janeiro, deparei-me com uma fotografia de Conceição: o rosto sulcado de rugas, tomando mate na cuia. Que orgulho e, ao mesmo tempo, que melancolia tomaram conta de mim. Parece que eu a via, já perto do fim, tão consumida, recendendo a guavira, esculpindo bugres na noite índia, ao som do riacho puro onde fremiam sapos.

          Saí em direção ao Catete, refletindo sobre provação, sobre injustiças sofridas, sobre legados profundos de brasilidade.

           CONCEIÇÃO FERREIRA e CONCEIÇÃO DOS BUGRES, duas almas concebidas e purificadas pela luz da Arte.