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Raquel Naveira cronicas b2714Fonte: Raquel Naveira

Dalma Nascimento, professora de literatura e amiga, do alto de seus 84 anos, contou-me que seu aniversário fora comemorado no Rio de Janeiro, com um jantar e música cigana. Houve velas, violinos, véus e uma dança cheia de paixão e sensualidade. “_Que tal se você escrevesse sobre esse tema?”, desafiou-me.

A cigana que me vem à mente é Carmen, da ópera de Bizet. As árias cantadas pela cantora grega Maria Callas, a maior soprano absoluta do século XX, interpretando com profunda análise psicológica cada traço da personalidade de fêmea transgressora de Carmen. Vejo Carmen: os olhos negros, a pele de azeitona, os cabelos cacheados, a boca pequena com dentes de pérola. Perfeita no palco, crescendo em poder, em altura, enchendo os corações de susto. Callas conhecia cada palavra, cada nota, cada passo, cada movimento de cena. Seu corpo tremia, num jogo bravio e selvagem. Abria leques, capas, rendas, enquanto rumava para a morte trágica, na ponta da faca manejada pelo amante atormentado, Dom José. Imagino a cortina se fechando, o teatro mergulhando no silêncio. Maria no camarim tirando as meias, o espartilho, enxugando o suor e as lágrimas. Depois caminhou pelas ruas de Sevilha ou de Paris, exausta, também ela mulher infeliz no amor por Onassis, o magnata cruel que a humilhara, até chegar a um quarto qualquer de hotel. Ali, debruçada no sofá de veludo, o coração de Maria Callas explodiu como uma rosa de sangue. As veias da garganta expostas e estancadas.

A cigana é Carmen. Seu espírito saiu da ópera para as páginas de um dos livros mais célebres da poesia espanhola: o Romanceiro Gitano, de Federico Garcia Lorca. Nesses versos pulsam a noite, a morte, o céu, a lua. O poeta grita: “_Foge lua, lua, lua/ Se chegassem os gitanos/ com teu coração/ fariam de ti anéis brancos e colares.” Ouve os cavalos dos gitanos vindo pelo oliveiral, com cascos de bronze e sonho, cabeças levantadas. Há som de metais e espatifar de espelhos por toda região da Andaluzia. Lorca reflete assim as penas de um povo nômade, talvez vindo dos desertos egípcios, que vive à margem da sociedade, que se sente perseguido, submetido a deportações por séculos e séculos.

Marcante também é o cigano Heathcliff, personagem do clássico romance O Morro dos Ventos Uivantes, da inglesa Emily Brontë. Heathcliff é o “cigano de pele escura”, o herói e o anti-herói da história. Arquétipo do romântico torturado por raiva, ciúme, vingança furiosa e cega. Uma alma infernal que se consome e destrói a si mesmo e a todos à sua volta. Catástrofe descrita por uma mulher inocente, capaz de expressar o desespero mais puro. Passados tantos anos, o tempo tendo levado as pessoas e as lembranças, as folhas do bosque balançadas pelo vento parecem uivar o nome do cigano: “_ Heathcliff...”

Folheio o romance misterioso, sobrenatural. Volto a ouvir as árias famosas de Carmen na voz de Maria Callas. “L’amour est un oiseau rebelle” (“O amor é um pássaro rebelde.”) Capto outra frase: “Si tu m’aimes...” (“Se tu me amas...”) Seguem a “Canção e dança dos ciganos” e a “Canção do Tourador”. O toureiro, a tourada. O touro preto que ataca a estranha bailarina de fogo, a Carmen descontrolada, que procura dominar, mas é dominada, anulada na arena da arte.

Querida Dalma, aceitei o desafio. Distante, abraço-a com carinho, enquanto ajeito o colete de pedrarias sobre meu vestido vermelho.