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Raquel Naveiraa inocencia 83783

Deparei-me com um quadro clássico: “A Inocência”, de William Bouguereau (1825-1905), um pintor acadêmico francês, que dominava perfeitamente a forma e a técnica realista. Trata-se de uma moça descalça, recostada numa fonte. O vestido é simples, branco, vaporoso. Um jarro ao chão. Dois anjos, um em cada ombro, parecem dispostos a elevá-la ao céu. Um deles deposita uma flor em seu decote. Talvez seja uma camponesa. A personificação da inocência, essa qualidade de quem é incapaz de praticar o mal. A pureza tem um poder que protege. É uma necessidade de realização plena de uma vida em comunhão com Deus no coração, nas intenções, nos pensamentos. É uma maneira limpa, sem contaminação, de ver as coisas, afinal, “para os puros todas as coisas são puras”.

As crianças possuem essa inocência. São crédulas, imaginativas, acreditam em tudo que contamos, confiam e admiram os adultos. Presas fáceis da crueldade humana. É necessário manter vivo esse estado de infância em que habitam a criança e o poeta. Mas como lavar as mãos na inocência? Dispensando amigos rudes? Não se lamentando nunca da própria sorte? Controlando a mente? Abstendo-se de tudo que mancha e entorpece os nervos? Invejo quem não conhece motivos de dor e revolta. Queria o conforto da inocência. Bem sei o que sinto e o porquê sinto. Conheço os finais trágicos das histórias e dos romances.

E por falar em romance, Inocência, do Visconde de Taunay, é um livro encantador, charmoso, suave e pitoresco. Um caso de amor contrariado, em meio à luxuriante natureza do sul de Mato Grosso.

Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), primeiro e único Visconde de Taunay, foi um nobre aristocrata, escritor, músico, político, historiador e sociólogo brasileiro. Lutou na Guerra do Paraguai como engenheiro militar, de 1864 a 1870. Desta experiência surgiram os livros: A Retirada da Laguna, episódio épico, vibrante, descrevendo a bravura dos heróis que foram obrigados a bater em retirada, perseguidos por numerosos inimigos e pela peste que os dizimava e Inocência, uma joia de estilo natural e romântico. O leitor se sente cativado pela narrativa e se indaga qual seria o final daquele triângulo amoroso formado pela bela Inocência, de faces mimosas, cílios sedosos e olhos matadores; Cirino, o prático em farmácia que percorria os caminhos medicando as pessoas e Manecão, o noivo violento, bruto, a quem ela era prometida. Tudo se passa numa fazenda próxima ao município de Santana do Paranaíba, nos ermos do cerrado cheirando a araticum;

Inocência era um ser com pouca consciência de si e, ao mesmo tempo, tão cheia de resistência, que preferiu a morte a renunciar ao amor verdadeiro que sentia por Cirino. E a morte desceu sobre os amantes com sangue e vingança.

Meyer, um cientista que caçava insetos para os museus europeus, batizou com o nome de “Papilio Innocentia” uma espécie de borboleta, talvez laranja e preta, que tremulava as asas sobre os tufos de hortênsias.

Essa obra prima regionalista tornou-se o romance brasileiro mais traduzido da época e, mais tarde, foi considerado o precursor da literatura sul-mato-grossense.

Viram? Assim como Taunay, conheço os dramas de guerras e do amor e morte universais. Tenho prática em viagens. Explorei as margens dos rios Taquari e Aquidauana. Escalei morros e mergulhei em cachoeiras. Quem viaja sozinha por essas matas não é mais inocente. O prazer que tive ao observar aquele quadro e ler aquele livro me surpreende e emociona. A inocência tem a marca da originalidade e faz chorar.