Raquel Naveira
Difícil explicar o fascínio de uma música sobre um povo, a ponto de elegê-la uma canção nacional. Foi o que aconteceu com a guarânia “Índia”, do compositor paraguaio José Assuncion Flores (1904-1972), com letra do poeta Manuel Ortiz Guerreiro (1897-1933).
Como esquecer o retrato dessa mulher de sangue tupi, sensual, de cabelos negros caídos nos ombros, lábios de rosa que incitam ao beijo, cheiro de flor e olhar meigo e doce? O amante sabe que partirá em breve, mas deseja tomá-la nos braços por alguns instantes, para levar a sua imagem para sempre.
A guarânia de ritmo lento chegou ao Brasil em 1952 nas vozes da dupla sertaneja Cascatinha e Inhana, numa versão em português de grande sucesso. Vários outros intérpretes como Gal Costa e Roberto Carlos deram novos tons e roupagens, com aquela força de quem expressa seus sentimentos e coloca todo o Paraguai dentro do coração.
A índia idealizada romântica tem em Iracema o mais perfeito retrato. Personagem do romance de mesmo nome escrito pelo cearense José de Alencar (1822-1877). Conta o amor de um branco, Martim, pela índia Iracema, “a virgem dos lábios de mel”. A própria palavra Iracema significa “mel de abelhas”. Trata-se de uma alegoria para a formação da nação brasileira. Iracema é a própria América, a natureza de “mares bravios” e Martim, o português colonizador, a cultura europeia. Iracema pertence à tribo tabajara, é filha do pajé, uma espécie de sacerdotisa vestal que guarda o segredo da jurema, bebida ritual. Martim é aliado dos pitiguaras, inimigos dos tabajaras e está perdido em território selvagem e misterioso, numa jornada de tensões. Iracema leva Martim a um bosque e lhe oferece o alucinógeno. Da união dos dois nasce Moacir, o “filho da dor e do sofrimento”, um brasileiro miscigenado. Quando Martim parte em sua caravela, Iracema definha em tristeza, saudade e solidão.
A prosa do livro Iracema é poética e paira até hoje sobre a Lagoa de Parangaba onde a índia costumava mergulhar: “Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.”
E, falando em romantismo, chegamos ao escritor e militar, Alfredo d’ Escragnolle Taunay, o futuro Visconde de Taunay (1843-1899). Taunay escreveu o diário de guerra Retirada da Laguna. Havia participado da Guerra do Paraguai e do épico episódio da retirada. Conduzidos pelo Coronel Camisão, a coluna brasileira chegou até Laguna, no Paraguai. Sem víveres para o sustento da tropa e afetada pela epidemia da cólera, a coluna foi forçada a retirar, alcançando finalmente as margens do Rio Aquidauana, no sul de Mato Grosso, com apenas alguns homens alquebrados pela doença e pela fome.
Taunay apaixonou-se então por uma índia da etnia chané, chamada Antônia. Seus cabelos negros guardavam os segredos das noites entre os morros. Ela se perfumava com folhas de laranja e funcho macerado e sabia pronunciar o nome francês dele enquanto o acariciava: “_ Taunay, Toné.”
Sobre esse interlúdio amoroso escreveu o próprio Taunay em seu livro Memórias, publicado um século depois de seu nascimento:
“A bela Antônia apegou-se logo a mim e ainda mais eu a ela me apeguei. Em tudo lhe achava graça, especialmente no modo ingênuo de dizer as coisas e na elegância inata dos gestos e movimentos. Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e sem resistência me entreguei exclusivamente ao sentimento forte, demasiado forte, que em mim nasceu. Passei, pois, ao seu lado dias descuidosos e bem felizes, desejando de coração que muito tempo decorresse antes que me visse constrangido a voltar às agitações do mundo, de que me achava tão separado e alheio. Pensando por vezes e sempre com sinceras saudades daquela época, quer parecer-me que essa ingênua índia foi das mulheres a quem mais amei.”
Guimarães Rosa ( 1908-1967) veio certa vez para o sul de Mato Grosso para “rodar as etapas da Retirada da Laguna”, livro que ele amava. É o que nos revela no capítulo “Sanga Puitã”, do livro Ave, Palavra. Já em Campo Grande, escreveu ele, aportam risos do Paraguai em pares de olhos escuros, mal avistados e no ritmo das polcas e guarânias. “_ Paraguayta linda!- toa uma harpa, entre guitarras”.
Nesta manhã de sol de domingo, dirijo-me aos quiosques da Feira Indígena do Mercadão Municipal de Campo Grande, espaço onde indígenas de aldeias de Aquidauana, Anastácio e Miranda vendem ervas e frutas. Em cestos e bacias espalham-se limões, mangas, pequis, guaviras, palmitos, feijões verdes. Há também potes de mel e orquídeas em xaxins. Os aromas se misturam e nos transportam para a vida e a cultura dos indígenas. No centro da praça, ergue-se uma enorme escultura da Índia Terena, do artista plástico Anor Mendes, em resina cor de terra. Às mulheres índias cabe o trabalho do cultivo, do artesanato de minúsculas flores brancas pintadas no barro, a força em perpetuar histórias e tradições.
De repente, uma delas se levanta. É uma índia jovem, com cabelos lisos e longos como crinas. Remexe os quadris, enquanto carrega na cabeça uma lata de cajus de castanhas duras como bicos de pássaros. Nas mãos, carrega um vaso de avencas. Desprende-se dela o perfume de frutas maduras, de seixos rolados, de plumagens vermelhas. A primavera fez ninho dentro dela.