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Raquel Naveira

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A hospitalidade é uma virtude que vem de berço, que nos leva a receber, alimentar, alojar pessoas. É algo que engrandece quem a pratica. Quando a ela se acrescentam a bondade, um rosto sorridente, um brilho nos olhos, um acolhimento de coração, o visitante se sente em casa, mesmo estando longe.

Há muitos anos possuímos uma pequena pousada, na Rua Dom Aquino, centro da capital do Mato Grosso do Sul. Dentre todos os que passaram por aqui, lembramos hoje com imenso carinho de nossa hóspede assídua e ilustre, Helena Meireles (1924-2005). Dona Helena, a violeira, compositora reconhecida mundialmente por seu talento como tocadora de viola caipira. Sua música era de raiz pantaneira e tinha o perfume da flor da guavira.

Dona Helena sentia-se à vontade para preparar na cozinha, a qualquer hora, o seu mate sorvido com bomba de prata. Ou para pedir sua sopa preferida. Ela dizia que o nosso café era o melhor do mundo porque na xícara havia gotas de poesia. Era nos pequenos detalhes oferecidos que o aconchego acontecia.

Quando víamos, lá estava ela mais uma vez no portão, de mala e cuia. Atrás, o filho Francisco com a viola a tiracolo, a secretária que a acompanhava, segurando o cabide com as roupas passadas, exclusivas para o show e os chapéus.

Nossa filha Letícia, uma menina de nove ou dez anos na época, com seus olhos de águia, ficava numa alegria imensa com sua chegada. Dona Helena colocava batom vermelho nos lábios e entregava a ela uns papeizinhos com beijos, à guisa de autógrafos. Tocava viola no jardim e todos iam se aproximando para sentar em volta, para vê-la e ouvi-la, fascinados. Um dia, Letícia trouxe os filhotes de nossa cachorrinha, a Lady, para visitá-la na pousada. Ela ficou feliz, batizou os bichinhos com nomes engraçados. Tenho certeza de que a convivência com Dona Helena marcou a vocação de Letícia para trabalhar depois com artistas, tratando a todos com espontaneidade.

Helena Meireles, a Dama da Viola, tão magrinha e frágil, quando abraçava contra o peito o seu instrumento, ganhava uma força descomunal, avolumava-se, desprendia-se do mundo e dos problemas. A sua presença tomava conta de tudo. Era a sertaneja, a velha cabocla, a tocadora de antigos alaúdes. O cheiro da madeira nobre parecia envolver todo o ambiente. As cordas soltas, de som forte, na afinação boiadeira. As notas saíam com o uso da palheta, das unhas compridas como garras arrancando lascas de timbre agudo. Ora imitava a harpa paraguaia, ora a guitarra portuguesa. Um pouco de bandolim e balalaica porque Helena improvisava sempre. A música ia tomando rumos inesperados. Como se ela caminhasse por uma floresta de pássaros loucos. Todos que punham os olhos naquela figura mágica, choravam, emocionados, seduzidos, enfeitiçados. O chocalho com som de cobra cascavel pendurado no braço da viola a protegia.

Helena nos contava sobre sua difícil jornada. Nascera em Bataguassu, no sul de Mato Grosso, no meio de peões, comitivas e violeiros. Casou-se aos dezessete anos.

Abandonou o marido para juntar-se a um paraguaio que tocava violão. Separou-se novamente e passou a se apresentar em bares e bordéis. Os filhos nasceram no meio do mato, sem assistência nenhuma. Ela os deixou com pais adotivos, pois fazia questão de lhes ter dado o dom que considerava mais precioso: a vida. Ganhou a estrada até encontrar o terceiro marido, com quem viveu mais de trinta e cinco anos. Foi encontrada doente por uma irmã que a levou para São Paulo. Lá foi descoberta pela mídia a partir de uma matéria elogiosa que saiu na revista norte-americana, a Guitar Player. Pisou num palco pela primeira vez aos sessenta e sete anos.

Apesar da fama e da possibilidade de sobreviver dignamente com sua arte, Helena falava com carinho de suas idas a fazendas distantes para tocar sua viola: “Era festança grande, minha filha. Algo para ser guardado na lembrança de todos daquelas bandas. Os músicos se preparavam: Zito na sanfona, Gregório na harpa e eu na viola. Eu punha uma blusa vermelha, um colete apertadinho, uma calça de brim com barra de renda branca. Começava a dança, dança de par solto, muito chamamé, polca, guarânia. Rolava cachaça. Depois acontecia o leilão de uma leitoa pururucada. Eu riscava a viola a noite toda, batia no tampo, acariciava o pinho que gemia como corpo em minhas mãos. As estrelas já iam altas. Acendiam a tocha, um chumaço de algodão enrolado num cabo de vassoura. Eu tocava como doida, elétrica, soltando faíscas. Sou séria, sabe? Até amarga. Estou cheia de rugas. Fico tensa e concentrada como uma pedra que rola pelo despenhadeiro e, lá no fundo, explode. Sufoco na alma a angústia, o desespero, a tristeza. Transformo tudo numa canção rouca. Quando terminava a festa, todos iam embora pelos caminhos: os homens, as mulheres, as crianças, na poeira do sertão. Os vaqueiros iam dormir no galpão sobre os pelegos cor-de-laranja. Um pé de ariticum largava nuvens de pólens. É forte o odor do ariticum.”

Um dia, Dona Helena não veio mais para a pousada. Saiu de cena. Leve como uma pena.