Raquel Naveira
Em homenagem a Lygia Fagundes Telles, que amava os gatos.
Nesta nova fase de vida residindo em São Paulo, num pequeno apartamento, nós que sempre tivemos cachorros dispostos a nos agradar, agora temos um gato, um gato preto chamado Jack London.
Não foi assim exatamente uma escolha ou uma aquisição. O gato já estava no apartamento quando chegamos. Meu filho que o trouxe nos informou: “_ É um gato especial, tem sete vidas, despencou do sexto andar do edifício Copan e sobreviveu.” Nada nos restou a não ser cuidar dele e amá-lo.
Logo o Jack passou a nos seguir por toda parte, a cravar em nós seus olhos fixos e amarelos, a nos demonstrar afeição.
Passei a admirar nele a natureza dos gatos: o seu narcisismo, ajeitando sempre a própria aparência, limpando-se num estranho ritual de purificação; os seus saltos abruptos que me assustam; a sua cauda que bate ameaçadora mesmo quando ele está dormindo; o seu passo macio e elegante.
Observo como ele se coloca simetricamente sobre as cadeiras, os tapetes, a impressora do computador. É um verdadeiro ator de teatro em avançadas posições.
`A noite, essa misteriosa criatura que habita o oculto, entra em meu quarto, sobe na cama, coloca as patas sobre o meu coração e eu o saúdo com carinho: “_ Pode vir, Jack.” Depois de algum tempo, ponderado e sinuoso, ele sai, caminha pelos corredores, viajante do tempo do antigo Egito que aportou em nossa história.
No Rio de Janeiro, numa rua estreita do Flamengo, havia um velho sebo. Lá eu encontrava raridades, livros que saltavam das prateleiras para as minhas mãos e olhos ávidos. O charme é que entre os divãs de veludo vermelho e puído, passeavam gatos, muitos gatos, adorando ver e serem vistos. Algum podia estar escondido entre os livros e nos provocar medo. Havia livros, corujas, pássaros e gatos nesse sebo. Nesse lugar mágico, de pensamentos secretos.
Muitos escritores evocaram a enigmática e fascinante figura do gato. Baudelaire dedicou-lhe versos, chamando atenção para “seus belos olhos de ágata e aço”. Comentou que os gatos eram “ amigos da volúpia e devotos da ciência, buscando o horror da treva e dos mistérios”. Que tinham a “nobre atitude da esfinge”.
Poe, em seu conto de terror psicológico e avassalador, intitulado Gato Preto, escreveu sobre o gato Plutão, “um gato forte, belo, completamente preto e excepcionalmente esperto”. O caráter perverso do animal se confunde com a perversidade crescente de seu dono alcoólatra, que mata o gato preto e a esposa e os empareda na adega. O conto, narrado em primeira pessoa, permeado de fobias e pesadelos, é de tirar o fôlego.
Por via das dúvidas, como já expliquei, respeito o meu gato preto, o Jack, sempre dando passagem à sua indolência oriental e ao seu ar de sacerdote. Trato-o com um certo distanciamento de quem não chega perto sem permissão. Afinal, nunca se sabe.
Descobri que a poeta e filósofa carioca, Viviane Mosé, tem um gato preto chamado Ninico. Confessa ela num poema: “O mundo se tornou meu Ninico./ Hoje quando amo/ Nem digo eu te amo, digo: você é meu Ninico.// Ninico é um gato preto vira-lata que já foi gato de rua.” Noutro verso ela diz que Ninico toma água na pia. E eu que pensava que só o Jack fazia isso. Ninico é um parente do meu Jack.
Ferreira Gullar nesse livro lindo que é o Em Alguma Parte Alguma tem vários poemas dedicados à memória do seu gato chamado Gatinho. Em um ele diz: “A noite cai, chove manso lá fora/ meu gato dorme/ enrodilhado/ na cadeira”. Há também um gatinho que se espreguiça, deita-se e adormece em cima de um poema; um gato que ronrona em seu colo e o fantasma permanente de um gato que já não existe mais, mas que continua sempre junto ao poeta.
Nossa prima, Celina Portocarrero, tradutora e poeta, explicou que amar gatos é coisa de família. Assim ela descreve uma cena: “Rápido como um susto/ do lusco-fusco salta o gato/ sobre os livros/ e o topázio em seus olhos/ reflete o brilho/ as palavras despertadas.” Tudo o que amo: gatos, livros, palavras. Faltaram flores e o bolero de Ravel.
Lygia Fagundes Telles é sempre retratada com seus gatos. Gatos também estão presentes nos seus contos como aquele gato preto do conto “As Formigas”, que rondava a soturna pensão da “bruxa velha balofa, de peruca mais negra que as asas da graúna.” Mas o gato mais interessante é o surreal gato Rahul, personagem do romance Horas Nuas. O gato Rahul pertence à atriz decadente Rosa Ambrósio. É uma espécie de alter-ego, de consciência profunda, ele pensa, monologa constantemente, interfere na narrativa, como neste trecho: “_ Pulo do colo de Rosona. Vou pisando pelos tapetes, almofadas, quando fui feito para árvores, telhados. Mas já estou achando que é melhor pisar no conforto, engordei.”
Tudo isso foi para contar que agora temos um gato, um gato preto chamado Jack London.